quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Sem Abuso: A Denúncia dos Horrores da Guerra na Obra do Grupo Art Popular



(Duas tradicionais formas de tortura)

Ínclitos Leitores,


O meu, o seu, o nosso aro está de volta com mais uma famigerada análise de nossa MEB (Música Erudita Brasileira) e mais uma vez com uma canção que integra o repertório do grupo Art Popular.

Já pudemos observar a influência da astronomia na produção de metáforas do Chico Buarque do gênero melacuequis, nada mais nada menos que o gênio Leandro Lehart.

Sempre na avant-garde, esse brilhante compositor, se utilizando de mais uma aparente banal canção romântica, tece duras críticas ao governo Bush e sua política intervencionista.

Leandro saiu do grupo que o projetou mundialmente, e em 2001 lançou um CD solo intitulado: "Solo".

Em 2003 voltou ao Art Popular, mesmo ano em que ocorreu a invasão do Iraque no dia 30 de março.

Do período chamado fase astronomica da carreira de Lehart até o seu retorno em 2003, o mundo passou por diversos eventos que repercutiram muito na obra deste músico.

Começando pelo atentado às torres gêmeas em 2001 e a chamada guerra ao terror que culminou com a invasão do Iraque, também chamada de Segunda Guerra do Golfo.

O governo americano sob o pálio de uma caça esquizofrênica ao terrorismo e ante o argumento da levada dos ideais democráticos para populações massacradas por ditaduras, empregou tradicional política intervencionista no Afeganistão e Iraque com o apoio de Britânicos, Italianos e outros.



A Guerra do Iraque começou em março de 2003, com a invasão do Iraque por uma coalizão militar multinacional liderada pelos Estados Unidos, sendo tida como encerrado em agosto de 2010.

O principal motivo para a guerra oferecido pelo ex-presidente norte-americano George W. Bush, pelo ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, e os seus apoiantes foi de que o Iraque estava desenvolvendo armas de destruição em massa.

Estas armas, argumentava-se, ameaçavam a segurança mundial. Para justificar a guerra, alguns responsáveis estadunidenses aduziram também que havia indicações de que existia uma ligação entre Saddam Hussein e a Al-Qaeda.

Apesar disso não foram encontradas provas de nenhuma ligação substâncial à Al-Qaeda e muito menos armas químicas.

A coligação liderada pelos Estados Unidos ocupou o Iraque e tentou estabelecer um governo democrático, no entanto falhou na tentativa de restaurar a ordem e a instabilidade levou a um conflito assimétrico com a insurgência iraquiana, guerra civil entre sunitas e xiitas e as operações da Al-Qaeda no Iraque.

Como resultado do seu fracasso em restaurar a ordem, um número crescente de países retiraram as suas tropas do Iraque.

Também não demorou muito para que as primeiras denúncias de abusos e torturas praticados pelos oficiais americanos contra os prisioneiros e civis sob sua guarda chegassem aos olhos de toda comunidade internacional.

A divulgação de imagens, feita pelos próprios oficiais em sites de relacionamentos, onde soldados colocam prisioneiros em situações, no mínimo, constrangedoras, correram por todo o planeta e os verdadeiros motivos de tal invasão restaram bem claros.

A tortura e abuso de prisioneiros na prisão de Abu Ghraib, o incidente chamado "os assassinatos de Haditha" onde 24 civis, incluindo mulheres e crianças foram mortos brutalmente, o incidente de Hamadiya (rapto e assassinato de um iraquiano chamado Hasshim Ibrahim Awad), o incidente de Mahmudiya (a violação e assassinato de uma garota de 14 anos e o assassinato da sua família), o massacre da boda (bombardeamento e alvejar de 42 civis em Mukaradib)são apenas alguns exemplos.

É evidente que a produção de um artista tão antenado com as questões contemporâneas não permaneceria incólume diante de tais fatos.

Desse modo, vejamos a famosa canção "Sem Abuso" que aparenta ser uma mera canção romântica, mas traz em seu bojo a denúncia nítida da situação no oriente-médio.




"Não abusa de mim não"...

Logo no primeiro verso o eu-lírico clama ao algoz o respeito pelos direitos e garantias previstos nas Convenções de Genebra.

"Um dia, você diz pra mim que me ama e me adora.
Que não se interessa por ninguém lá fora
Pura armação, pressão.
Da cabeça de quem um dia"


Ora, vejamos, o que aparentava ser um discurso voltado para a amada na verdade relata a relação diplomática americana com Saddan Hussein, da parceria ao ódio.

Notem o último verso "da cabeça de quem um dia" que é cortado abrubtamente e não encontra complemento no resto da canção... Uma voz que se cala, que é abafada pela censura.

"Bagdá chorando e você na calçada.
Eu no meu orgulho e você não diz nada"


Agora o que enfrentava a questão do Iraque de forma velada torna-se expresso. A alusão ao sofrimento vivido pela população civil local, o orgulho ocidental e impotência diante da calamidade restam evidentes nestes versos.


"Tanta gente no veneno e eu sem você
Senta aqui, pensa bem, pode crer.
Que o amor é maior que tudo
Do que eu e você, você e eu".


Notem que nessa estrofe o autor menciona o "veneno" como condição adversa de um grupo de pessoas e roga ao interlocutor que pare, reflita e compreenda a imensidão do amor, deveras um apelo pacifista, nos moldes de Gandhi.

Sem abuso, sem abuso, sem abuso.
Se eu tô com você, não sou de ninguém.
Eu sou o seu bem


Eis o refrão, novamente o que aparentava ser um discurso para a amada, de fato indica a condição do prisioneiro de guerra diante de seu capturador.

"Se eu tô com você" eu estou sob sua custódia, "eu sou o seu bem", bem não no sentido de querido, mas no sentido de propriedade (bem móvel, imóvel).

E a canção repete:

Um dia, você diz pra mim que me ama e me adora.
Que não se interessa por ninguém lá fora
Pura armação, pressão.
Da cabeça de quem um dia
Bagdá chorando e você na calçada.
Eu no meu orgulho e você não diz nada
Tanta gente no veneno e eu sem você
Senta aqui, pensa bem, pode crer.
Que o amor é maior que tudo
Do que eu e você, você e eu.

Sem abuso, sem abuso, sem abuso.
Se eu tô com você, não sou de ninguém.
Eu sou o seu bem


Importante salientar que tal recurso não é original, Chico Buarque de Hollanda o utilizou na canção "Apesar de Você" até hoje tida como canção de amor por muitos.

Ocorre que os motivos para o protesto político ser mantido velado e somente insinuado nas canções de Chico decorriam da censura oficial imposta pelo Estado durante o regime militar.

Agora Lehart, em "tempos democráticos" lança mão de tais recursos por uma razão clara:

O artista pós-moderno não se limita a fazer uma canção de protesto ou uma canção de amor, entrelaça uma na outra, arregimenta as imagens poéticas de modo que a pluralidade de significados expressem a complexidade do amor em tempos de guerra, leva a música "de protesto" para outro patamar, demonstra a censura velada dos meios de comunicação, ressalta a impotência do homem contemporâneo diante da nova ordem geopolítica.

Sem abuso.