quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019
Crônica do Reino de Redonda
Não sei se foi Voltaire ou o bicheiro de minha rua que disse que o melhor governo é o qual há o menor número de homens inúteis, caso seja possível a inexistência de homens, melhor ainda. Em tempos de culto ao que havia caído em desuso (vitrolas, fitas K7, suspensórios, monarquia), considerando ainda o marasmo da modernidade desprovida de terras nullius a se conquistar, o caso do Reino de Redonda demonstra que de há muito, autoproclamações fictícias, como a de José de Abreu no Brasil e Juan Guaidó na Venezuela, são levadas em bastante consideração.
Para quem não está a par do assunto, o Reino de Redonda é uma nação fictícia (como qualquer outra) criada em face da ilha de Redonda, uma das tantas porções de terra desabitadas no mar do Caribe reivindicadas por Antígua e Barbuda. Com seu território não chegando a três quilômetros quadrados, o local carece de palmeiras e até de praias, sendo apenas um penhasco habitado por lagartos e talvez por alguma cabra. A região foi descoberta por Colombo, em sua segunda viagem para a América, não se dignando o conquistador sequer a desembarcar na ilha, apenas a nomeando Nossa Senhora da Redonda.
A origem do reino seria proveniente do escritor de ficção científica M.P. Shiel que teria propagado a anedota de que seu pai, Mattew Dowdy Shiell, um banqueiro de Montserrat, comprara a ilha em 1865, por ocasião do nascimento de seu rebento, tendo rogado da Rainha Vitória a sua proclamação como rei do local, o que foi concedido pela generosa majestade (Thank you, Queen, como diria Bolsonaro), sob a condição de que não houvesse nenhuma prática política contrária aos interesses coloniais britânicos. Assim, M.P. Shiel, agora Filipe I de Redonda, assumiu o trono em uma cerimônia naval presidida pelo Bispo de Antígua.
O maior legado de Shiel (Filipe I) foi a engenhosa ideia de criar uma aristocracia literária, concedendo diversos títulos nobiliárquicos para escritores como H. G. Wells, Dylan Thomas e Henry Miller, efetivando assim algo próximo do ideal platônico concebido na obra “A República”, mas em uma monarquia. Seu reinado foi longo e pacífico, de 1865 até 1947, quando abdicou da coroa em favor de um pupilo seu, o também escritor, John Gawsworth.
Algo de podre no reino de Redonda passou a se sentir após a coroação de Gawsworth, agora João I, que dado a uma vida boêmia e repleta de farras, em diversas ocasiões de pindaíba, empenhou o título e a coroa fictícia provocando uma larga polêmica sobre a linha sucessória do reino. O consenso mais amplo aponta John Wynne Tyson (também escritor), ou João II, como o verdadeiro sucessor de Gawsworth. Tyson reinou até os anos noventa do século passado quando, cansado dos problemas inerentes ao cargo, abdicou da coroa em favor do escritor espanhol Javier Marias, após a leitura da obra “Todas as Almas”.
Paralelo ao que narra a historiografia oficial, Max Legget sustenta ser o verdadeiro monarca pois, durante uma temporada em Toronto na casa de seus pais, Gawsworth (João I) teria supostamente prometido aos anfitriões a coroa caso tivessem um filho varão. Por sua vez, William Leonard Gates, autoproclamado Rei Leo, alega ser o legítimo herdeiro do trono, porquanto John Wynne Tyson (João II) fora apontado apenas como executor literário de Gawsworth e que este teria, em verdade, nomeado Arthur John Roberts (o verdadeiro João II) como rei, o qual viria a nomear Gates como seu sucessor. Como prova de sua tese, Gates afirma estar de posse do Arquivo Real de Redonda, que indica oficialmente suas credenciais como regente, embora sempre tenha se negado a apresentá-las publicamente. Correndo por fora, ainda temos Robert Williamson, autonomeado Rei Roberto, o Calvo, nomeado por Wynne Tyson que, em um chá da tarde, ao confidenciar-lhe o interesse em abdicar em favor de Javier Marias, foi dissuadido do intento considerando a indigna ação de outorgar um trono vinculado ao Império Britânico em favor de um espanhol depois de tanto esforço dos ingleses em expulsá-los do Caribe.
Indiferente às intrigas de seus opositores e embora seja republicano, Javier Marias ou Xavier I, um dos mais cotados ao prêmio nobel de literatura em 2018 (se não fosse o prêmio ter sido suspenso após os escândalos sexuais nos bastidores da Academia Sueca), valendo-se da tradição literária de seu reino, passou a conceder títulos nobiliárquicos para escritores e artistas tais como Pedro Almodóvar (agora Duque de Trêmula), Pierre Bourdieu (Duque Desenraizado), Francis Ford Coppola (Duque de Megápolis), Umberto Eco (Duque da Ilha do dia Anterior). Vida longa ao rei, esperemos apenas que não se descubra qualquer potencial petrolífero na região sob risco dos Estados Unidos se inclinarem a levar democracia e liberdade ao lugar.

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