domingo, 29 de setembro de 2019
Crônica do Amor de Pica segundo B. Schianberg ou "Cohen e o Proctologista"
Não sei se foi Leonard Cohen ou meu proctologista que me disse que o amor não tem cura, mas é o remédio para todos os demais males, faltou especificar apenas qual espécie de amor está em jogo. A máxima ecoa na mente após a leitura do “eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, frase de para-choque de caminhão que dá título ao excelente romance de Marçal Aquino que narra a tórrida relação entre o fotógrafo Cauby (igual o cantor) e Lavínia (lindo nome feminino que combina com lascívia).
Acompanhando a ascensão e desgraça de Cauby, não tem como não sentir inveja até de sua dor. Que se dane Cazuza e “sua sorte de um amor tranquilo”, amor meia-bomba, entorpecente mais vagabundo que loló, ópio do peito, torsilax do afeto, o que em muitos momentos da vida precisamos é de uma paixão arrebatadora, um bom e velho amor de pica.
Terminado o livro do Marçal, fui apanhar os três primeiros discos do Cohen que Bandeira e Calango, do sebo Alienígena em Manaus (onde meu livro está sendo vendido), gentilmente reservaram para mim: "Songs of leonard Cohen (1967), "Sons from a Room (1969) e "Songs of Love and Hate" (1971).
Só em casa, descabaçando os álbuns, percebi o mimo oferecido: um recorte de jornal com uma coluna de Sérgio Martins intitulada “o padrinho da dor” (apelido que consagrou Cohen) descrevendo o belo canto do cisne do poeta e músico canadense na forma do seu derradeiro disco “You want it darker” (2016), no qual ele faz um verdadeiro acerto de contas com Deus, com antigos amores e até consigo próprio. Agora em setembro ele completaria oitenta e cinco anos e em novembro já se vão dois anos de sua partida.
Estou eu agora no meu boteco imaginário com Cohen e Marçal. Cada um narrando e contabilizando seus afetos e desditas por todas as Suzannes, Mariannes e Lavínias da vida. O primeiro não pude conhecer pessoalmente, o segundo encontrei um dia, por acaso, no Conjunto Nacional em SP. Em um dos meus raros momentos de tietagem, pedi de rompante um autógrafo no “luz em agosto”, do Faulkner, que trazia comigo. Marçal educadamente se recusou alegando, razoavelmente, que não autografava livros que não fossem seus. Ironia do destino foi verificar depois que o prefácio da obra era exatamente dele.
Marçal folheia e empilha seus exemplares das obras completas de Benjamin Schianberg, autor fictício de criação sua, enquanto eu revejo e apresento para Cohen trechos do filme “o amor segundo B. Schianberg”. produzido pela TV Cultura inspirado nas lições do mesmo autor. Juntos, concluímos, inspirados na obra do mestre mencionado, que o amor de pica possui sete fases.
A primeira fase é a da febre. O professor Benjamim Schianberg escreveu sobre as tentações em seu livro “O que vemos no mundo”. Segundo ele, “alguns indivíduos sublimam seus desejos, projetando-os num plano apenas mental, e isso é suficiente para satisfazê-los”. Outros, aduz Schianberg, apesar de resistirem com diferentes graus de esforço, acabam por ceder às tentações. São o que ele chama de “homens de sangue quente”.
Queremos o que não podemos ter, diz o professor, o mais obscuro dos filósofos do amor. É normal, saudável. “O que diferencia uma pessoa de outra, ele acrescenta, é o quanto cada um quer o que não pode ter. Nossa ração de poeira das estrelas”.
De acordo com o professor, não é possível determinar o momento exato em que uma pessoa se apaixona. Se fosse, ele afirma, bastaria um termômetro para comprovar sua teoria de que, nesse instante, a temperatura corporal se eleva vários graus. “Uma febre, nossa única sequela divina’’. Schianberg vai além: ao se apaixonar, um “homem de sangue quente” experimenta o desamparo de sentir-se vulnerável. “Ele não caçou, foi caçado”.
Sentir-se vulnerável, talvez o “falling in love” inglês retrate melhor esse estado que o nosso “apaixonar-se”. O indivíduo nessa fase sente-se tão vulnerável como nossa democracia e nossas liberdades, tão delicado quanto a heterossexualidade masculina, um pingo de chuva é capaz de matar-lhe.
A segunda fase é a das fagulhas. Ela pode se iniciar com um roçar de braços, surge como uma descarga elétrica. Segundo Schianberg, “a fase das fagulhas é o momento em que os amantes têm a certeza de que algo vai acontecer em breve para saciar a fome que sentem, e saboreiam a espera, muitas vezes prolongando-a, choques não são incomuns nessa etapa”, sustenta”.
A terceira fase é a da “guerra declarada”, o desejo se torna incontrolável e quando chega ao paroxismo finalmente se realiza, mas não se sacia. Dois “animais na selva suja da rua”, como canta Erasmo, que se entregam e se cobiçam até os limites de suas forças, que se abandonam na lida dos corpos esgotados e ainda se procuram, pernas bambas, sexos doloridos, ansiosos pelo instante possível de se atracarem novamente.
Em tempos obscuros, em que o futuro envolto numa nuvem de fumaça não se enxerga mais, a Amazônia em chamas, agrotóxico posto na mesa, utopias desacreditadas, ciência desmerecida, reforma da previdência que manda para as calendas o descanso derradeiro, o que nos resta senão amar? Amar desesperadamente, de forma apressada e inconsequente, mesmo “num sítio tão frágil e incerto como o mundo”, como diria a poeta portuguesa e escorpiana, Sophia de Mello Breyner Andresen, que completaria cem anos neste infausto dois mil e dezenove.
A quarta fase é a da sintonia. “Muitas vezes, entre os amantes, em adição às afinidades do corpo, surge uma sintonia mental, intelectual, que ao propiciar jogos, provocações e brincadeiras privados acentua ainda mais o caráter de cumplicidade na relação. Casais costumam estabelecer espaços particulares de comunicação, inacessíveis ao restante da manada humana ao redor. Intimidade psíquica”.
É a fase das comidinhas, receitas para depois do amor, como bem vaticina Vinicius. O casal se isola do resto mundo. Fundam um território e idioma próprios, um léxico particular, piadas internas. Para estranhos o casal fica um nojo, afinal as demandas do mundo e das demais pessoas não passam de interrupções e inconvenientes no idílio amoroso. O trabalho se torna enfadonho e um mal necessário apenas, os amantes contam as horas para que possam retornam ao seu bunker, ao seu habitat, ao que efetivamente interessa.
É evidente que tanta intensidade assim sempre acaba mal, nada foi feito pra durar, “que seja eterno enquanto dure, posto que é chama”, aquela conversa toda. Cedo ou tarde alguém vai passar um bom tempo de estadia no heartbreak hotel.
Eis que começa “a grande dança dos erros” mencionada por Clarice Lispector, a quinta fase, a do ocaso. A sucessão de desencontros e desenganos. O amor inadvertidamente cruzando a sutil fronteira do ódio, seu vizinho, pois o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença. Os amantes sentem como um punhal lhes rasgando, um corote queimando, impossível não “rimar amor e dor”, Caetano.
Essa fase é a mais imprevisível de todas. Pode durar dias apenas, mas também anos. O mais cruel é encontrar um jeito de dizer adeus, pois, “that's no way to say goodbye”, retruca Cohen.
A sexta e penúltima fase é a da nostalgia. “A grande desgraça é que as lembranças não bastam para confortar os amantes. Nunca aplacam. Ao contrário: servem só para espicaçar as chagas daqueles que foram condenados à lepra do amor não correspondido”, pondera o professor Schianberg. Todas as memórias produzidas na quarta fase retornam como fantasmas para atormentar o amante. Tudo lembra o ser amado.
Quem nunca viveu o purgatório do “e se”, ou o limbo do “talvez”. Talvez, talvez. No reino amoroso, o professor Schianberg ensina, o “talvez” é moeda sem nenhum valor. “Talvez se eu tivesse perdido aquele avião, talvez se não tivesse tomado aquele trem, quando ainda existiam trens. Se tivesse ido para outro lugar”...
Há quem diga que a cura de um amor antigo é um novo amor. O problema é superar a STTL, ou “Síndrome de Transferência Total de Libido”, na definição do professor Schianberg. Em geral, “poucos homens são fieis de verdade, tudo depende da oportunidade e da temperatura do sangue do homem em questão, em alguns casos, contudo, o indivíduo se apaixona com um grau de entrega tal que toda a sua libido se transfere, de modo exclusivo, para o objeto amado”. O amor de pica descamba pra obsessão.
Há quem defenda que aqui se encerra a trajetória do amor, há quem defenda que existe uma última, uma espécie de posfácio. A sétima fase seria a da aceitação. A mesma aceitação que experimentamos pela manhã, quando resolutos, levantamos da cama para enfrentar mais um dia, a mesma aceitação de quem se acostuma com uma cicatriz recente, ou quando, ainda tontos, nos dispomos a deixar a mesa do bar, com ou sem saideira. Pois, no fundo, lá no fundo, sempre sabemos que uma hora é preciso fechar a conta.
“O que acontece é que, quando estou com você, eu me perdoo por todas as lutas que a vida venceu por pontos e me esqueço completamente que gente como eu, no fim, acaba saindo mais cedo de bares, de brigas e de amores para não pagar a conta. Isso eu poderia ter dito a ela”, observa Marçal. “Mas não disse”.

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