quarta-feira, 13 de novembro de 2019
Crônica da América Latina [Bolano e o Vigia]
Não sei se foi Roberto Bolaño ou vigia do meu prédio que me disse que da violência, da verdadeira violência, não se pode escapar, pelo menos não nós, os nascidos na América Latina.
Há trinta anos, Gabriel García Márquez (1927-2014) lançava “O General em seu Labirinto”, obra fictícia (como toda a América Latina) que retrata os últimos dias de Simón Bolívar (1783-1830), o homem que um dia ousou sonhar com uma pátria latino-americana unificada do México até a Terra do Fogo, essa pátria formada por um “pueblo sin piernas, pero que camina”, como na canção de Calle 13.
O que mais impressiona na obra de Gabo é o contraste da figura mazelada, débil e enfraquecida do General Libertador com seu mítico passado repleto de glórias e façanhas.
Bolívar esconjura o túmulo com espírito enérgico, mas sabe que o destino derradeiro é inevitável.
Acompanhado apenas de seu servo fiel, o General parte rumo ao exílio, assombrado por seus fantasmas e delírios de grandeza (seu próprio labirinto) e leva consigo seu único tesouro em inúmeras arcas: uma vasta biblioteca que resistiu aos longos anos de combates, fugas e moradias provisórias. Talvez um símbolo de que um povo não constrói uma nação sem livros.
Em tempos em que a expressão “bolivariana” é muito mal empregada, e até difamada, urge resgatar o legado do libertador, dos libertadores que dão nome ao principal torneio futebolístico da região, cuja final foi retirada de Santiago por conta da linda primavera Mapuche que clama por uma velha e nunca ultrapassada bandeira: a luta pela igualdade.
Parece-me que para quem vive em condições totalmente adversas, como as nossas, não pode se permitir ser pessimista, torna-se imperiosa a esperança, uma esperança lúcida que compreende que não há conquista sem luta. Certo Mujica ao dizer que a esquerda latino-americana falhou ao formar consumidores e não cidadãos, ao crer que a mínima distribuição de renda promoveria consciência de classe.
Falhamos. O povo vem desistindo do sonho de igualdade e encontra amparo no ópio fascista neopentecostal de um paraíso além-mundo que ainda promete prosperidade terrena.
De bíblia em punho o Palácio Quemado na Bolívia é invadido por uma insólita aliança entre fundamentalistas religiosos e milicos (sempre eles), a mesma bíblia trazida pelo colonizador (junto com a sífilis).
Quando Evo e Linera embarcam para o exílio no México (assim como o Guatemalteco Guzmán há 65 anos no primeiro golpe contra a América Latina patrocinado pelos EUA) um sonho se desfaz melancolicamente: a aliança entre um dos mais proeminentes líderes indígenas dos últimos tempos com um dos mais notáveis intelectuais da região.
Não deixa de ser simbólica a ânsia dos golpistas em destruir a biblioteca de Álvaro García Linera, estimada em mais de trinta mil exemplares, a distopia de “Fahrenheit 451” é aqui, por estas paragens quase todos os dias uma Biblioteca de Alexandria arde em chamas.
Uma árdua e dura lição vem sendo ensinada para a nossa geração que não viveu os horrores das recentes ditaduras militares e que dispersou sua identidade no fetichismo pop-liberal: sem luta não há justiça social, sem educação não há democracia, sem entendermos quem somos não sabemos para onde vamos.
Somos Lautaro, somos Bolívar, somos Victor Jara, somos Chico Buarque e Milton, somos Mercedes Sosa e Violeta Parra, somos Marielle. Por estas bandas é preciso todo dia se reconquistar a liberdade de um Lula, é preciso todo dia se recompor a biblioteca de um Linera.

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