segunda-feira, 22 de junho de 2020
Crônica da Teoria dos Trens e Momentos Luminosos (Levrero e a Cartomante)
“Por instantes, minha vida atual parece viajar num ônibus a toda velocidade; está cheio de gente amontoada, não para nunca, não consigo ver o motorista nem tenho a menor ideia de para onde está indo”.
Mario Levrero
Não sei se foi o próprio Mario Levrero ou minha cartomante que me disse dos tais momentos luminosos, lampejos quase epifânicos em que a distribuição violenta e aleatória dos fatos sucessivos da vida de alguma forma parece fazer sentido, por um instante, ou ter uma espécie de conexão sutil.
Acordei por volta da meia noite. Há meses, desde o início da quarentena, passei a adotar a rotina de dormir durante as tardes e trabalhar madrugada adentro, aproveitando volta e meia um pouco das manhãs. Pensar que passei a vida inteira as difamando, aonde ia, para hoje descobrir que as adoro. O amanhecer, o raiar do dia, a promessa inevitável de algo, ainda que não vá se confirmar, como viver sem isso? Meus problemas na verdade são as tardes, mal digestas depois do almoço, abafadas, tediosas, improdutivas, frustrantes, descoberta pessoal vinda apenas com os trinta. Meu trabalho permite preenchê-las dormindo, quando o vizinho em obra assim o permite.
Quase que de forma maquinal, neste final de domingo (sempre eles), logo ao acordar, liguei o televisor e fui rever “Before Sunrise” do Richard Linklater, com os belíssimos Ethaw Hanke e Julie Delpy. Não foi algo tão abrupto e repentino assim, diga-se de passagem, já planejava revê-lo, talvez pela data, dezesseis e dezessete de junho, remeter ao filme e ao encontro de Jesse e Celine, mas não esperava que isso fosse se dar como um imperativo de alguém recém desperto.
Da trilogia “before” foi o filme que menos vi, ou que menos minha memória preservou certas passagens, embora nunca tenha me esquecido de algumas cenas memoráveis como a leitora de mãos, o vagabundo vienense, os atores amadores e sua vaca excêntrica, o vinho implorado e a madrugada no parque.
“Before Sunrise” é um daqueles filmes, obras, que você reencontra várias vezes em momentos distintos da vida, sempre encontrando uma nova nuance, uma leitura ou emoção nova possível, mas confesso que dessa vez nem foi tanto a questão amorosa que me afetou, mas o tempo e sua irredutibilidade.
Quase com espanto aristotélico percebi que o filme já tem seus vinte e cinco anos, a idade aproximada dos atores quando da gravação, a minha idade de sonho, de sangue e de América do Sul que um dia tive e não voltarei a ter.
Como em todos os filmes do Linklater, a narrativa está repleta de referências poéticas, em especial uma das últimas cenas, já na manhã de despedida, largados na praça, Jesse recita um trecho de “As i walked out of one evening” de W. H. Auden: “years shall run like rabbits”.
Sim, momento de constatação do óbvio ululante: os anos e a juventude se vão num estalar de dedos e parece que junto com eles a capacidade de se apaixonar e se encantar pela vida e por outrem. Senti-me tomado pelo que o velho uruguaio Mario Levrero chamava de “angústia difusa”, que surge como que do nada, em muitos momentos a partir dos mais banais episódios.
“A pessoa tende a perceber as coisas de tal modo que possam integrar-se bem à rotina de seus dias, se qualquer coisa em nós parasse para perceber seja lá o que fosse, com a intensidade que qualquer coisa que fosse merece, não haveria rotina possível, nem contrato social possível”. Lembrei-me de imediato de seu “Romance Luminoso” que li recentemente assim que cheguei de minha última viagem, antes da pandemia, pelo Peru.
Em certa passagem, quando ele menciona uma insólita experiência de contato quase místico com uma rocha numa praia, “não espere que eu conte o que conversamos com a rocha, pois não sei, mas tenho certeza de que nós dois aprendemos segredos da vida que, depois, foram aflorando aos poucos, nos momentos de necessidade”, me veio na memória a conversa que tive com um esmoleu em Cusco.
Estava sentado diante da Plaza de Armas com minha ex-namorada quando ele nos abordou. Talvez por ouvir nossa voz e sotaque quando de sua aproximação, já chegou falando em português. Sentou ao meu lado e contou um pouco de sua história. Não sei se precisava mais ser ouvido do que pedir dinheiro, ou se era apenas parte de sua estratégia de contato, em resumo, contou uma confusa história que envolvia uma mulher e uma filha em Barcelona, a tentativa de obter um visto na embaixada brasileira em Lima e como dispendera todos os seus recursos passando a viver nas ruas da capital inca.
Não estava muito disposto a conversar no dia, mas me deixei levar e conversamos um pouco sobre a conhecida ferida aberta latino-americana chamada colonização, de como o Peru e sua beleza mística provocavam um sentimento ambíguo de encantamento e melancolia, como pensar que uma civilização tão avançada conseguiu ser simplesmente dizimada por uma centena de bêbados espanhóis promíscuos.
Em algum momento da conversa, o sujeito, que se dizia de Belém, mas não possuía nenhum sotaque paraense, algo mais sul mato-grossense, passou a defender uma curiosa tese. Segundo ele, o mofo e o limo das pedras usadas nas construções incas, ao longo de séculos, concentravam propriedades extremamente nocivas ao organismo humano, um veneno silencioso e atroz capaz de matar qualquer um ao longo dos dias. O paliativo, ou antidoto para tal efeito, estava em ervas e preparos mantidos em sigilo pelos nativos, que guardavam pra si a receita e o uso diário (algo como quinino), deixando estrangeiros morrerem pouco a pouco na ignorância de seu encanto e abobalhamento turístico, tudo numa espécie de vingança histórica ardilosamente concebida.
Daí passou a narrar como os peruanos possuíam uma xenofobia velada que só ele e alguns poucos desprovidos de dinheiro e status experimentavam. Terminou falando de como ansiava voltar ao Brasil ou conseguir chegar até a Catalunha e reencontrar a mulher a filha.
Pra quem havia saído do Brasil exausto de delírios e teorias da conspiração obviamente meu humor não estava o mais receptivo para tal tipo de narrativa, mesmo assim lhe dei algumas moedas que não lhe pareceram satisfatórias, dada a nítida cara de contrariado quando se despediu. Assim ficamos, eu e minha ex-namorada, ruminando quais parcelas, de toda aquela longa história, poderiam merecer crédito ou não.
Em parte, bem que poderia ser possível, me agradaria pensar que por trás daquela hospitalidade quase subserviente que encontramos nos peruanos houvesse alguma forma de revanchismo anticolonial. De toda sorte, não consegui mais olhar as pedras justapostas em Cusco da mesma forma.
Partimos no mesmo dia de trem. Trem, ou a metáfora de trem que encontrei em Levrero assim que voltei ao Brasil diante de sua teoria existencial. Segundo Levrero “a pessoa vai tomando trens que vão para diferentes destinos e andam a diferentes velocidades, e toma vários trens ao mesmo tempo, alguns que viajam inclusive em sentido oposto”.
A vida, segundo o uruguaio, seria uma grande estação móvel de trem, da qual partem continuamente trens que chegarão ou não ao seu destino, que voltarão ou não à estação, “portando cada um deles um pequeno eu ansioso, com seu rosto amarelado colado à janela e os olhos muitos abertos”. Saber combinar o andamento dos trens em conjunto é a arte da escrita, como seria a arte de viver saber combiná-los na vida real, ambas as artes desconheço completamente como essa crônica e minha experiência existencial atestam.
"Andábamos sin buscarnos pero sabiendo que andábamos para encontrarnos”, o verso de Cortazar bem poderia ser a epígrafe ou o mote do encontro de Jesse e Celina no trem austríaco e quão luminoso foi o instante em que saltam em Viena e passam a usufruir de seu breve e intenso idílio amoroso.
Não estranhe o leitor que empreendeu o tour de force que é concluir a leitura desta extensa crônica a inserção de tal frase, ela me remete a tal ex-namorada por ser a frase que mantínhamos em concomitância no status de um aplicativo de celular quando nos conhecemos e nos espantamos com tal coincidência, assim como coincidência semelhante pensar que um certo alguém estaria a ver “Before Sunrise” praticamente no mesmo horário em que o revi neste incauto domingo.
Certo mesmo sempre é o tempo, como sabiamente mencionou Auden, morto na Viena cenário do filme de Linklater:
“The years shall run like rabbits/ For in my arms I hold/ The Flower of the Ages/ And the first love of the world/ But all the clocks in the city/ Began to whirr and chime: 'o let not Time deceive you, you cannot conquer Time/ 'In the burrows of the Nightmare/ Where Justice naked is,/ Time watches from the shadow /And coughs when you would kiss./ 'In headaches and in orry/ Vaguely life leaks away, / And Time will have his fancy / Tomorrow or today”.
O tempo sempre triunfa sobre todos nós, cedo ou tarde.

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