
Depois de uma longa pausa, o meu, o seu, o nosso aro irá analisar mais uma canção da MEB (Música Erudita Brasileira) muito escutada, dançada, mas pouco refletida.
Como todos os senhores conhecem, em algum lugar do passado recente, o boom do axé music tomou conta dos televisores nacionais e a cada domingo um novo grupo bahiano surgia com um sucesso e uma proposta musical e artística inovadora.
Beto Jamaica e Cumpadi Uóxito trouxeram o conceito heideggeriano de “tchan”, a companhia do pagode trouxe a garrafa e Kant, Hegel e Nietzsche quando viram a boca da garrafa ficaram loucos e também foram ralar.
Se você se inquire sobre qual seria essa concepção essencial, aí vai:
O Axé Music surgiu obviamente como um movimento de massas, ambicionando agrupar no mesmo espaço apertado, o maior número de gente suada e fedida para pular e repetir roboticamente passos e coreografias ditados por livres pensadores e artístas do corpo que, através de suas dancinhas, poderiam liberar o boga (ops) a consciência para experimentar de forma carnal o processo de alienação e reificação na sociedade de massas.
De fato, o termo Axé Music agrega grupos e pensadores de orientações totalmente distintas:

Temos Bel Marques e o Chiclete com Banana que conservam a constante tentativa de lançar o homem diante do espanto aristotélico para com a realidade: “Cara Caramba!”...O que é o Chiclete com Banana? É um afecto, a maleabilidade borrachuda e insistente da contigência existencial em termos Sartreanos;
Por sua vez, temos Durval Lelys e o Asa de Águia que através do humor, da irreverência e da bufonice pregam uma nova moral em uma perspectiva nietzcheana, daí o nome: Asa de Águia.
Não é peito de frango, coxa, sobrecoxa, mas sim: Asa, e de águia, o instrumento-meio para alçar as elevadas alturas do espírito livre.

Curiosamente, outros grupos como Terrassamba, Harmonia do Samba, Banda Mel, Banda Beijo, Axé Blond e Banana Split foram acusados de terem perdido as raízes e concepções iniciais do movimento do Axé Music. “Trairam o movimento Axé Music véio” disse o Sociólogo Dado Dollabella.
Os preceitos basilares trazidos por Cumpadi Uóxito com o tempo foram se degradando em exibições de corpos malhados matematicamente em academias, além de coreografias repetitivas e enfadonhas, o que deu abertura para o surgimento do período mais negro da música de domingo (assim conhecido tal movimento em razão do espaço explorado nos programas dominicais de entretenimento).
O crepúsculo do Axé veio com o Padre Marcelo Rossi que, aproveitando-se dos princípios e diretrizes do movimento, utilizou o Axé no escuso intento de evangelizar e trazer a palavra da salvação, em certos momentos no mesmo grandioso palco de Gugu Liberato, grande menestrel e responsável outrora por abrigar estes grandes artistas e gênios da música brasileira.

O Axé caiu no obscurantismo, e podemos chamar esse período de Idade Média do Axé Music. Pouco se produziu nesse período e as rádios estavam abarrotadas das canções doutrinadoras do Padre Marcelo.
De toda forma, o papel de resgate filosófico, cultural e reflexivo do axé music original caiu na mão de um grupo de mulheres, todas oriundas da vanguarda do feminismo bahiano e seguidoras fieis de Simone de Beauvoir e Susan Sontag.

Carla Cristina Magalhães Ribeiro Andrada nasceu em Salvador-BA, filha da mais fina burguesia bahiana, estudou nas melhores escolas da capital, mas para espanto de todos, traiu sua classe abandonando a faculdade de Administração na UFBA para cursar Filosofia e Etnologia na Sorbonne em París.

Passados alguns anos, influenciada e incentivada por Simone de Beauvoir, sua mentora, Carla Cristina voltou ao Brasil para, junto com outras jovens artistas e intelectuais soteropolitanas, resgatar o caráter crítico do Axé Music.
Ousadas e irreverentes, as artistas eram conhecidas pelos cafés e bares de Salvador como “As Meninas”, passando estas a aderirem e intitularem-se definitivamente como tais.

O primeiro disco foi de cara um grande sucesso, trazendo em seu bojo toda a carga ideologica contida nos anseios e expectativas do grupo, “Xibom Bombom” lançado em 2000 pela Universal Music vendeu mais de 400 mil cópias no Brasil, recebendo disco de ouro.
A música de trabalho do primeiro álbum será analisada a seguir:
“Bom xibom, xibom, bombom!
Bom xibom, xibom, bombom!
Bom xibom, xibom, bombom!
Bom xibom, xibom, bombom!”
João Cabral de Melo Neto
De plano, temos uma expressão repetitiva que alterna e brinca com o adjetivo: “bom”, que repetido forma o substantivo: “bombom”, ou ainda o adjetivo “bom” superlativizado, e tendo o “xi” como intersecção, ou ainda como prefixo da expressão "xibom".
O que seria o "xibom"?
Vemos portanto, que a filiação ao concretismo é anunciada logo no início.
“Analisando
Essa cadeia hereditária
Quero me livrar
Dessa situação precária...(2x)
Onde o rico cada vez
Fica mais rico
E o pobre cada vez
Fica mais pobre”
Talvez o grande feito das Meninas tenha sido empregar o verbo “analisar” em uma canção de axé. Quem diria hein?
E o que analisam as Meninas?
Uma cadeia hereditária. Vemos aqui o denuncismo de conteúdo político, relembrando que é no Estado da Bahia que temos uma das mais famosas famílias de caciques políticos que passam de geração em geração o poder estatal: os Magalhães.
O eu-lírico ainda aponta o intuito de desvencilhar-se do estado de precariedade em que se encontra no meio desse sistema.
Tal sistema assume um caráter determinista expresso na relação vetorial onde o abastado somente se acentua como tal e por sua vez o miserável só se exterioriza e age afundando-se mais na pobreza.
O Determinismo nega a possibilidade de escolha ante a existência de uma sucessão de fatos que o homem não pode interromper e escapar. O homem está submetido,inexoravelmente, a uma série de leis naturais, sujeitas ao princípio da causalidade.
Estão contidos nessa extrofe o darwinismo social, o determinismo de classes e o sujeito esmagado pelo fenômeno social.
Mais do que denunciar, as Meninas buscam apontar causas para tal fenômeno e assim expressam:
“E o motivo todo mundo
Já conhece
É que o de cima sobe
E o de baixo desce
E o motivo todo mundo
Já conhece
É que o de cima sobe
E o de baixo desce”...
Temos que considerar que tal composição emergiu em um clima de profundo pessimismo.
A queda do muro de Berlim, a derrocada da ideologia marxista, o neoliberalismo soberano em todo o mundo e enquanto isso no Brasil o que viviamos?
A consolidação da política liberal iniciada por FHC e reiterada por Lula e as privatizações generalizadas.
O de cima inevitavelmente subirá, o de baixo descerá, mesmo sendo de conhecimento geral, a tomada de consciência da classe trabalhadora não se efetivara como previsto no ideal Marxista.
E o refrão:
“Bom xibom, xibom, bombom!
Bom xibom, xibom, bombom!
Bom xibom, xibom, bombom!
Bom xibom, xibom, bombom!”

O que parecia uma criação concretista toma novos ares, o bom xibom, xibom, bombom, se assemelha ao movimento impiedoso de uma máquina, de uma caixa registradora, utilizando-se de um recurso que Chaplin empregou no filme "Tempos Modernos", para denunciar a automação e alienação do individuo no trabalho, não reconhecendo mais a si em seu produto.
Contudo:
“Mas eu só quero
Educar meus filhos
Tornar um cidadão
Com muita dignidade
Eu quero viver bem
Quero me alimentar
Com a grana que eu ganho
Não dá nem prá melar
E o motivo todo mundo
Já conhece
É que o de cima sobe
E o de baixo desce
E o motivo todo mundo
Já conhece
É que o de cima sobe
E o de baixo desce...”
O humanismo expresso na estrofe final é esperançoso. No anseio do trabalhador está a aurora de um novo dia. A luta pelo salário digno, a busca pela educação, alimentação, dignidade e cidadania trazem em si a semente do novo amanhã, mesmo em face do determinismo que todo mundo já conhece em que o de cima sobe e o de baixo...