terça-feira, 30 de abril de 2019
Tributo ao Belchior [O bardo e o entregador de gás]
Não sei se foi Belchior ou o homem do gás que me disse que viver é melhor que sonhar, mas em tempos difíceis sem um sonho (também sem uma cachaça) ninguém segura esse rojão. Em dois mil e dois o Brasil era outro e este que vos escreve, evidentemente, também (se Heráclito tiver razão do último banho pra cá já não sou mais o mesmo). Naquele ano o escrete canarinho seria campeão do mundo de futebol pela quinta vez e um torneiro mecânico, vindo do movimento sindical, seria eleito Presidente da República, sob a desconfiança do mercado e euforia do povo.
Contando treze pra quatorze anos, minha vida se resumia na rotina idílica de estudante ginasiano no colégio franciscano em Juazeiro do Norte, Ceará. Aula, bola, bicicleta, missa e gibi. Por aquele tempo eu e meu amigo e colega de sala Mikkael Duarte, hoje renomado psiquiatra cearense (enquanto eu renomado doido), adquirimos o hábito de visitar a Nobel, então única grande livraria na região. Sem um puto no bolso e vontade de desvendar aquele mundo de autores e ideias que se descortinava diante da curiosidade juvenil o jeito era dissimuladamente folhear obras como quem tem dúvidas sobre o que comprar, ler páginas sob o olhar desconfiado dos funcionários e guardar os exemplares de volta para a prateleira no aguardo de nova investida furtiva (ainda não tinha coragem de furtar livros). Foi em nossa homenagem que apregoaram uma placa com os dizeres “proibido ler obras na íntegra e tomar anotações”. Só faltou o “isso aqui não é biblioteca”. Não preciso dizer que nosso meio de leitura era lento e parcimonioso, como quem come de bico os grãos, talvez por isso hoje o meu trauma em não poupar gastos com livros e ler sempre de uma sentada qualquer obra, por mais volumosa que seja.
Numa tarde de dia de feira, sem pouco público, um movimento anormal e repentino se fez com a chegada de uma imponente figura que até então eu só conhecia das capas de discos e cds, Belchior e sua voz trovejante, sua presença de um magnetismo que poucas vezes percebi em alguém, estava diante de nós para uma sessão de autógrafos. Pegos de surpresa, sem tempo de voltar em casa e apanhar algo autografável, sem dinheiro como sempre pra qualquer coisa, pagamos centavos por uma folha de papel sulfite e nos pusemos como primeiros da fila que logo se formava.
Ainda não era o Belchior desaparecido, muito menos procurado, embora já então alguns vestígios de sua contínua deserção já se notavam. O último álbum autoral “baihuno” já completava quase dez anos, “vício elegante”, em que interpreta em sua maior parte outros compositores, seis anos. Seus maiores interesses eram então a pintura e a poesia, a música e o show business estavam de escanteio há muito. Antes de chegar minha vez fiquei absorto não apenas na figura, mas na beleza e elegância do seu traço empunhando uma nanquim dourada. Eu então desenhava e aquela era a caneta dos sonhos de qualquer artista liso. O encontro foi rápido, sorriu talvez surpreso por um fã tão novo na fila, perguntou pelo meu nome e riu do “Juan com J”, riu mais ainda quando comentei sobre a caneta e disse que só não me dava pois não teria com o que autografar. A verdade é que Belchior era até então uma voz, entre tantas outras, que embalavam nosso gosto musical ainda em formação. Confesso que sua retórica sarcástica e seca então não fazia minha cabeça como um Chico, um Gil, ou um Caetano. Foram precisos muitos porres, desilusões políticas, existenciais e amorosas, para que aquele canto torto feito faca cortasse minha carne em todo seu sentido, até que eu entendesse a minha “solidão, o meu som e a minha fúria e essa pressa de viver”.
Belchior marcou não só a mim, mas o que posso chamar de minha geração, ou simplesmente a quem carinhosamente chame de “os meus”. “Sujeito de Sorte” foi a trilha sonora de minha viagem para Machu Picchu. Chorei nas margens do Sena em Paris cantarolando “tudo outra vez”, “minha fala nordestina quero esquecer o francês”. Recentemente revi vídeos de reuniões com amigos, ainda adolescentes, ao som de um violão cortando “a palo seco”. Belchior era tão próximo que nunca nos fez caso o estardalhaço de seu desaparecimento. Inconscientemente segui os seus passos errantes pelos lados do sul, atravessando a fronteira dos pampas “onde um tango argentino me vai bem melhor que um blues”. Belchior foi, é e sempre será um ponto de fuga onde convergem as paralelas de nossas existências.
Foi num trinta de abril como esses, há dois anos, acordando no sítio do meu sócio e amigo Érico Gonçalo, depois de um porre homérico tomado com meu também amigo e colega Breno Messias Leite (outro fã incondicional do bigodudo) que ainda grogue liguei a televisão pela primeira vez depois de dias e dei de cara com a manchete inevitável, a que anuncia a única certeza derradeira. Incrédulo fiquei diante da tela, enquanto Breno expurgava os excessos da noite anterior no banheiro ao lado, até este me apareceu ao lado e só me foi possível murmurar: “Belchior morreu”. O ogro ainda limpando o vômito nas mangas somente pode exclamar um “puta que o pariu”.
O celular não pegava nas bandas bucólicas em que nos achávamos e somente na volta pra cidade, ao primeiro sinal, fui acompanhando as chuvas de mensagens e avisos de ligação perdida. Como se eu tivesse perdido um ente muito próximo e não estivesse dando sinal de vida preocupei muita gente que acreditou que eu aproveitara o bonde. Demorou a ficha a cair, “se sob o sol nada mais velho e vil que a morte, quem viu, na vida, novidade em estar vivo?”. Foi só quando velhos amigos que foram ao velório em Fortaleza e gravaram um coral de crianças cantando “comentários a respeito de John” que as lágrimas cancerianas jorraram sangrando como açude ou barragem próspera. Meses antes, em Manaus, conseguimos realizar uma homenagem ao bardo no bar do Cabelo, minha embaixada, meu ponto de exílio, onde em várias madrugadas o dono homônimo coloca o Bel pra tocar aos poucos bêbados e boêmios como prêmio aos sobreviventes.
Ainda será preciso uma ruma de gerações até que situem Belchior no seu devido lugar na história da música e da poesia, o que ele nunca parece ter feito questão, mas justiça deve ser feita num país sem memória como o nosso, onde, em tempos de democracia, elegemos nostálgicos de ditaduras, o que faz suas letras mais do que atuais. Embora eles tenham vencido “e o sinal está fechado pra nós que somos jovens”, “não cantem vitória muito cedo não”, “sempre desobedecer, nunca reverenciar” deve ser o mote em tempos de lambe-botas de milico e fascismo escancarado. Não é preciso que nos digam “de que lado nasce o sol, porque bate lá nosso coração”. Enquanto isso, “até mais ver meu camarada”.

quinta-feira, 25 de abril de 2019
Veleidades
Desarmou meu couraçado
Grudou minha língua ao palato
Incendiou-me as pálpebras
Empenhou meu sono
Distribuiu meus discos na feira
Atirou meus livros da sacada
Preparou meu galo de estima
Com quiabo
Guisado
Fez troça do meu pau
Profanou meu rito
Publicou meu diário
Babujou meu almoço
Sustou meu cheque
Afundou minha nau
Ensurdeceu ante minhas súplicas
Me ensinou todos os tons
E todas as nuances
Do mais solene e indiferente não
Cortou minhas ceroulas
Deu-me como morto ao jornal
Comemorou abraçada ao inimigo
Rasgou minhas cortinas
Sumiu ao primeiro raiar da manhã
Torou em fúria os cabelos
Sujou meu crediário
Dedurou-me ao fisco
Beijou o escudo rival
Quando enfim fatigado
Rendido
Extenuado
Perguntei-lhe a causa
Motivo
Circunstância
Ou razão
Fez o bico que me encanta
Torceu os lábios
Acentuou as doces covinhas
E murmurou:
Não sei ao certo
Raiva, desgosto ou
Capricho
Vai que é só o meu jeito
Discreto
De te chamar atenção

quinta-feira, 11 de abril de 2019
Receita para que os Homens Melhorem [Wood Allen e o Confeiteiro]
Não sei se foi Wood Allen, ou meu confeiteiro, que uma vez me alertou do contraste entre a mulher e o homem nus, a primeira é uma deusa, uma obra de graça e inspiração da natureza, o segundo não passa de um pêndulo desajustado. O abismo não para por aí, vários relatos de amiga(o)s reconhecem que gostar de homem não é escolha, se fosse estaríamos fodidos, ou desprovidos de foda qualquer.
O homem não passa de um mal necessário para a perpetuação da espécie. Precisaremos boicotar qualquer pesquisa que crie uma forma de reprodução que não nos envolva se pretendermos nos manter por aqui sob uma justificativa lógica antes que descubram nossa insólita e evidente inutilidade, não sendo o bastante ainda abusamos de nossa prescindibilidade.
A lei de falências estabelece que o empresário falido e não reabilitado fica proibido de exercer a atividade empresarial enquanto não for dada por cumprida toda uma série de obrigações pendentes. E se nos relacionamentos fosse assim? Se aos homens fosse dado ou permitido se enamorar novamente ou ensaiar o cortejo de um novo amor somente mediante a prova de quitação das pendências anteriores? Talvez isso nos ajudasse a melhorar.
Nem me refiro ao cumprimento das grandes promessas e juras, a utopia da fidelidade e do amor eterno não alcançadas [deletar esse trecho na revisão final pra não ter encrenca com a patroa], em verdade, não são a causa essencial da bancarrota e do declínio das relações.
O amor se estrepa nas pequenas coisas, como diria Drummond, sendo minado e corroído nas pequenas frustrações e desenganos, nas mais miúdas coisas que somos relapsos, e friso, somos todos relapsos, inclusive a mim, pois dos meus conhecidos só vejo campeões em tudo, sensíveis desconstruídos ou touros reprodutores incompreendidos, todos nós incapazes de reconhecer uma falta sequer. E teria maior prova de amor para a nova amada que acordar pela manhã e em nome dela dar a cumprir como os doze trabalhos de Hércules as pequenas promessas não cumpridas para os ex-amores?
Levar Tereza ao cinema (sim Tereza não foi levada ao cinema por inúmeras procrastinações), ensinar Bruna a andar de bicicleta e Pietra a nadar, cozinhar o tal do fillet mignon com batadas souté para Ana, conhecer os pais de Marisa, passar um final de semana em Paraty com Sofia, prestar atenção quando Clara arrependida fala da blusinha que bateu os olhos e não comprou, vasculhar o guarda-roupa e descobrir o seu tamanho, comprar a famigerada blusinha, ir ao show do Djavan com Solange, não fazer Luísa esperar, comprar o que realmente Rebeca queria ganhar de aniversário, descobrir a música favorita de Estela, ver “sempre ao seu lado” com Bianca, ouvir mais Amanda.
Talvez, mas só talvez depois disso, poderíamos voltar a nos indagar, sem cinismo, a clássica questão que aflige nossa raça desde nossos ancestrais: afinal, o que querem as mulheres?

quinta-feira, 4 de abril de 2019
Crônica dos ventos do norte (Ou de Sêneca e o barbeiro)
Não sei se foi Sêneca ou o meu barbeiro que disse que não há vento favorável para quem não sabe ao certo aonde deseja ir. O certo é que há uma curiosa e obscura relação entre as paixões e os ditos ventos do norte, estes ventos que não conhecem meio termo. Somem por dias a fio em terras amazônidas, não oferecendo a menor brisa ao angustiado transeunte, ou aparecem em revoadas de destelhar casas e levantar saias de moças.
Bóreas, que significa vento do norte, ou devorador, era na mitologia grega o deus do vento frio do Norte que trazia o inverno. Bóreas é geralmente descrito como um idoso alado muito forte e dotado de um violento caráter. Os gregos achavam que seu lar estava em Trácia e descrevem uma terra ao norte chamada Hiperbórea que significa "para além de Bóreas". Nessa terra, as pessoas viviam em completa felicidade até a mais longeva das idades. Um dia, Bóreas se apaixonou por Orítia, uma princesa ateniense. Apesar de tentar conquistá-la, a princesa fez pouco caso. Bóreas a raptou enquanto ela dançava nas margens do rio e levou-a numa nuvem de vento até sua morada. Impressionante como os deuses gregos são temperamentais e simplesmente não sabem ouvir um sonoro “não”. A reconciliação entre os cidadãos atenienses e o Deus veio quando, ameaçados pelos persas, clamaram por Bóreas que lançou ventos fortes fazendo afundar os barcos persas, sendo construído um altar em sua veneração junto ao Rio Iliso. Dos persas náufragos nada sabemos.
Em “Sangue Latino”, Secos e Molhados dizem que “os ventos do norte não movem moinhos”, o que o demonstra a impossibilidade do emprego da energia eólica, embora digam que é possível estocar ventos. Djavan fez uma canção intitulada “ventos do norte”, na qual diz “bem-vinda não sei de onde, não sei como apareceu, se foi dos ventos do norte, ou da maré que cresceu”. Dércio Marques, por sua vez, também tem sua “ventos do norte”, rica melodia e letra: “ventos do norte que trazem pra sorte a luz da manhã”. Ou seja, os ventos do norte trazem sorte e a pessoa amada em até três dias com frete grátis (exceto região Norte e Nordeste).
Kath Bloom em “come here”, a canção que toca em “Before Sunrise”, diz que “there's a wind that blows in from the north and it says that loving takes its course”. O amor é uma linha de ônibus ou trem, basta saber achar a rota certa, mas vai pelo vento do norte. Já Bob Dylan, cantando sua “girl from the north country” diz ao desavisado que “if you're traveling to the north country fair, where the winds hit heavy on the borderline, remember me too ne who lives there, for she once was a true love of mine”. Se tiver por tais bandas, já sabe.
E você, que bons ventos te trazem por aqui?

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