sábado, 24 de agosto de 2019
O Peso da Fumaça [Quintana e o Frentista]
Não sei se foi Mário Quintana ou o frentista do posto de gasolina que me disse que fumar é uma maneira sutil e disfarçada de suspirar.
Pergunto-me agora quantos suspiros teremos ainda pela frente, do que depender da política suicida em matéria ambiental que o atual desgoverno promove ou incentiva. Se a atmosfera se tornou sufocante e em breve tomaremos suco de agrotóxico, voltar a fumar não me pareceu uma ideia tão insensata.
Falando em fumar, quando a coisa fica cinza, costumo me refugiar em meu santuário, minha memória afetiva, a mesma que me fez rever “Smoke”, película dos anos noventa, cujo titulo, de forma sábia e poética, foi vertido como “Cortina de Fumaça” em terras brasileiras.
A modesta produção, dirigida por Wayne Wang e inspirada num conto de Natal do escritor Paul Auster ("Auggie Wren's Christmas Story"), oferece ao espectador um elixir de ética e poesia em tempos de decomposição de valores, sem contar pitorescas e nostálgicas cenas da época em que se acendia um belo de um cigarro ou charuto em recinto fechado sem maiores pudores (tal qual o ar irrespirável de Mad Men).
O enredo todo se desenvolve dentro e a partir da tabacaria de Auggie que, ao contrário do Esteves de Fernando Pessoa no poema "Tabacaria", é um homem cheio de metafísica, tendo como passatempo, por décadas, fotografar, diariamente e no mesmo horário, a esquina de sua loja no Brooklyn.
O que talvez possa ser o registro do mais do mesmo acaba capturando e revelando pelo acaso nuances do lugar e dos passantes, considerando que “nada é real exceto o acaso”, como diz o próprio Paul Auster na sua trilogia de Nova Iorque.
Aliás, “tabacaria”, tanto o lugar quanto o poema, parece necessariamente nos levar a processos introspectivos e decisivos em nossa vida, vide o escritor italiano Antonio Tabucchi que um dia, ao ler os versos de Pessoa achados ocasionalmente em um quiosque perto da Gare de Lyon, em Paris, sofreu uma espécie de epifania, descobrindo o real sentido de sua existência ou de sua busca interior.
O que há de mais doce e terno nos personagens do filme é uma espécie de postura pia diante dos conflitos e antagonismos, reconhecendo-se no sofrimento do outro uma extensão de seu próprio dilema.
Assim, Auggie perdoa a ex-mulher oportunista, a filha viciada em crack, o empregado relapso que, por sua vez, perdoa o pai ausente, ganhando o perdão do escritor que o acolhe e que também perdoa os traficantes que o agridem, finalmente tentando perdoar o destino pela morte precoce de sua mulher baleada em um assalto. Sei que não parece fazer muito sentido em tempos nos quais cristãos celebram a morte de criminosos e o “dar a outra face” tenha se tornado algo obsoleto.
Para perdoar é preciso compreender, para compreender o outro é preciso enxergá-lo, vê-lo diante de si. A racionalidade e a democracia modernas pressupõe o reconhecimento da alteridade. Na verdade perdoar está virando item de luxo pois está cada dia mais impossível o mínimo diálogo com quem nega fatos evidentes e verdades científicas, preferindo transformar tudo em mera questão de opinião (convicção).
O que estamos a experimentar é a total negação do outro, uma névoa obscura de intolerância tão densa quanto a vista em Londres, em dezembro de 1952, que quase colocou a cabeça do conservador Churchill a prêmio, mas que ainda não demonstra ser capaz de colocar minimamente em xeque os “atributos” de nossa versão arremedada e muito vagabunda de reacionário que nos preside.
Curiosamente, logo na primeira cena de “Smoke”, o escritor Paul Benjamin narra para outros clientes uma anedota de Sir Walter Raleigh, corsário, explorador e poeta que viveu na segunda metade do século XVI e início do século XVII, reconhecido como introdutor do tabaco no Império britânico. O aventureiro inclusive chegou a pisar por estas paragens, coletando produtos e narrando mitos acerca das terras amazônicas.
Desde que o corsário se tornara favorito da Rainha Elizabeth (Primeira), ou Queen Bessie como a chamava, fumar se tornou moda na Corte. Conhecido por sua astúcia reza a lenda que um dia apostou com a Monarca, agora sua parça, que seria capaz de medir o peso da fumaça. Para tanto colocou um cigarro novo sobre uma balança e o pesou, fazendo a operação novamente depois de tê-lo fumado, dessa vez colocando cuidadosamente a guimba e as cinzas e as pesando. A diferença entre as pesagens seria capaz de definir o peso da fumaça.
Em tempos nos quais relatórios da NASA, dados do INPE, opinião de especialistas e preocupação da comunidade internacional de nada adiantam para convencer o mais recalcitrante dos bolsominions, talvez lançando mão da mesma medida ou expediente, para cada árvore queimada, possamos mensurar o peso dessa fumaça e a dimensão do véu da ignorância que atualmente nos encobre.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019
Crônica da Melancolia [Victor Hugo e o Padeiro]
Não sei se foi Victor Hugo ou padeiro da minha rua que me disse que a melancolia é a felicidade de ser triste. O sol já saiu de câncer, mas esse certo estado de espírito não desalojou o corpo deste que vos escreve nem sob a ameaça de sessão de descarrego ou reza brava de benzadeira.
A melancolia é diferente de uma “bad” que não bate, espanca, é mais que uma “deprê”, ou como os mais antigos chamavam: “fossa”, a dita cuja pode ser atingida após uma tristeza prolongada em demasia, diluída no tempo, ou surge ainda quase que por inspiração, ao que Baudelaire chamava de “spleen”, o estado de “moleque pensativo” que, volta e meia, nos acerta em cheio. A sacana pode surgir em decorrência de um fato da vida, ou até mesmo provocada, reproduzida em laboratório.
Ainda nos idos do quinto século antes de Cristo, Hipócrates já classificara e vaticinara os perigos da bílis negra. Segundo o pai da medicina, a influência de Saturno leva o baço a secretar mais bílis negra, alterando o humor do sujeito (escurecendo-o), o que leva ao estado de melancolia.
Em algumas situações, a melancolia pode decorrer não de um típico sentimento individual pequeno burguês safado, mas de um estado coletivo capaz de ultrapassar gerações e afetar toda uma cultura. Além da clássica obra do alemão Albrecht Dürer, talvez a imagem mais recente que melhor exemplifique o fato seja a do singelo quadro “nighthawks” de Edward Hopper.
É noite e a rua está vazia fora do restaurante. No interior do estabelecimento um possível casal e um homem sentado sozinho (de costas para o espectador); nenhuma das três pessoas no balcão aparentemente conversa entre si, todos estão imersos nos seus próprios pensamentos. Por sua vez, o atendente parece estar buscando algo para além da janela, alheio aos clientes.
Se olharmos, com mais atenção, resta evidente que não há maneira de sair da zona do bar posto que as três paredes formam um triângulo que cria uma espécie de armadilha que encurrala os clientes. É também notável que o bar não tem porta visível para o exterior, o que ilustra a ideia de confinamento e aprisionamento.
Hopper teria começado a pintar a obra imediatamente após o ataque a Pearl Harbor, num domingo, dia tradicional da melancolia não sei se mais por culpa do cristianismo ou do capitalismo. O certo é que, após o evento, houve um sentimento generalizado de tristeza, um sentimento que é retratado na pintura, assim como o vazio e a solidão da vida moderna, tema comum em todo o trabalho do artista.
A minha primeira atração pelo quadro se deu pelo título, "falcão ou gavião da noite", alcunha usada para descrever alguém que fica acordado até tarde. Um anúncio para os cigarros "Phillies" é destaque em cima do restaurante, a primeira marca de charutos que comecei a fumar ainda na adolescência.
A cena foi supostamente inspirada por um restaurante (já demolido), em Greenwich Village, lar de Hopper no bairro de Manhattan. O lote agora vago é geralmente associado com o local que é conhecido como ex-Mulry Square, no cruzamento da Seventh Avenue South, Greenwich Avenue e West 11th Street. No entanto, segundo o The New York Times, esse não pode ser o local que inspirou a pintura, porque um posto de gasolina esteve a ocupar o lote entre os anos trinta e setenta do século passado. Há alguns anos em uma rápida passagem pela Big Apple procurei o local, em vão.
Hopper foi um espectador ávido de cinema, e os críticos notaram a semelhança das suas pinturas com cenas de filmes. Várias das suas pinturas sugerem filmes de gângsteres dos anos trinta, tal como a primeira versão de “Scarface”.
O pintor não só foi influenciado, mas influenciou o cinema. Win Wenders recria “Nighthawks” como o cenário de um filme-dentro-um-filme em “The end of Violence”, não esquecendo ainda todo cinema noir e neonoir (seja lá o que isso signifique), basta o exemplo do clássico “Blade Runner”. Em uma entrevista, o diretor Ridley Scott afirmou que andava sempre com uma cópia da pintura debaixo do nariz da equipe de produção para ilustrar o aspecto e a sensação que procurava para o filme.
Esse tal sentimento coletivo ou generalizado parece com o que estamos a experimentar em terras brasileiras, ao menos em minha bolha social que, em termos buarquianos, chamo de “minha gente”.
Tudo começou naquele fatídico agosto, de dois anos atrás, quando um desgostoso golpe travestido de impeachment se cumpriu diante de nossos olhos absortos, sendo que ainda fomos obrigados a ver um facínora elogiador de torturadores e ditaduras chegar ao poder, ironicamente, através da democracia que ele tanto avilta.
Desde então, a rotina matinal do brasileiro lúcido consiste em tomar café e contrariado acompanhar a mais nova barbárie ou asneira promovida pelo atual desgoverno, seja pelo jornal ou pela corrente de whatsapp difundida pelo tio reaça. Até então, só o futebol nos permitira tal cumplicidade nacional, nas duas copas que sediamos, assim vamos demonstrando com o tempo que somos cordiais até com a nossa própria desgraça.
De toda a sorte, a melancolia não é necessariamente ruim, em algumas circunstâncias até se torna necessária para que reconheçamos certos aspectos da vida. Ela nos permite viver num estado de clareza de consciência, o equilíbrio que há no meio do caminho entre o coach e o emo, além de em muitos casos promover um estado criativo, potencializar certas habilidades, afinal, “sem um bocado de tristeza não se faz um samba não” e com a tinta por ela produzida que Brás Cubas redigiu suas memórias póstumas.
Admito que para um canceriano, com lua em câncer, não é muito difícil atingir tal condição: basta ler “tabacaria”, do Pessoa, divinamente (mas sem metafísica) recitado pelo saudoso Antônio Abujamra, ouvir “don’t think twice it’s all right” do Dylan, ou qualquer canção sombria do Tom Waits (que no disco “nighthawks at the diner” se inspira na pintura de Hopper), ver um daqueles episódios tristes de Chaves, uma derrota do Corinthians (não tem sido frequente), um desengano da morena, ou simplesmente uma persistente chuva, típica da Amazônia, ou se pá tudo junto, para reproduzirmos mentalmente o memorável monólogo do recém falecido Rutger Rauer, interpretando o replicante de Blade Runner: “ll those moments will be lost in time, like tears in rain”.

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