quarta-feira, 7 de agosto de 2019
Crônica da Melancolia [Victor Hugo e o Padeiro]
Não sei se foi Victor Hugo ou padeiro da minha rua que me disse que a melancolia é a felicidade de ser triste. O sol já saiu de câncer, mas esse certo estado de espírito não desalojou o corpo deste que vos escreve nem sob a ameaça de sessão de descarrego ou reza brava de benzadeira.
A melancolia é diferente de uma “bad” que não bate, espanca, é mais que uma “deprê”, ou como os mais antigos chamavam: “fossa”, a dita cuja pode ser atingida após uma tristeza prolongada em demasia, diluída no tempo, ou surge ainda quase que por inspiração, ao que Baudelaire chamava de “spleen”, o estado de “moleque pensativo” que, volta e meia, nos acerta em cheio. A sacana pode surgir em decorrência de um fato da vida, ou até mesmo provocada, reproduzida em laboratório.
Ainda nos idos do quinto século antes de Cristo, Hipócrates já classificara e vaticinara os perigos da bílis negra. Segundo o pai da medicina, a influência de Saturno leva o baço a secretar mais bílis negra, alterando o humor do sujeito (escurecendo-o), o que leva ao estado de melancolia.
Em algumas situações, a melancolia pode decorrer não de um típico sentimento individual pequeno burguês safado, mas de um estado coletivo capaz de ultrapassar gerações e afetar toda uma cultura. Além da clássica obra do alemão Albrecht Dürer, talvez a imagem mais recente que melhor exemplifique o fato seja a do singelo quadro “nighthawks” de Edward Hopper.
É noite e a rua está vazia fora do restaurante. No interior do estabelecimento um possível casal e um homem sentado sozinho (de costas para o espectador); nenhuma das três pessoas no balcão aparentemente conversa entre si, todos estão imersos nos seus próprios pensamentos. Por sua vez, o atendente parece estar buscando algo para além da janela, alheio aos clientes.
Se olharmos, com mais atenção, resta evidente que não há maneira de sair da zona do bar posto que as três paredes formam um triângulo que cria uma espécie de armadilha que encurrala os clientes. É também notável que o bar não tem porta visível para o exterior, o que ilustra a ideia de confinamento e aprisionamento.
Hopper teria começado a pintar a obra imediatamente após o ataque a Pearl Harbor, num domingo, dia tradicional da melancolia não sei se mais por culpa do cristianismo ou do capitalismo. O certo é que, após o evento, houve um sentimento generalizado de tristeza, um sentimento que é retratado na pintura, assim como o vazio e a solidão da vida moderna, tema comum em todo o trabalho do artista.
A minha primeira atração pelo quadro se deu pelo título, "falcão ou gavião da noite", alcunha usada para descrever alguém que fica acordado até tarde. Um anúncio para os cigarros "Phillies" é destaque em cima do restaurante, a primeira marca de charutos que comecei a fumar ainda na adolescência.
A cena foi supostamente inspirada por um restaurante (já demolido), em Greenwich Village, lar de Hopper no bairro de Manhattan. O lote agora vago é geralmente associado com o local que é conhecido como ex-Mulry Square, no cruzamento da Seventh Avenue South, Greenwich Avenue e West 11th Street. No entanto, segundo o The New York Times, esse não pode ser o local que inspirou a pintura, porque um posto de gasolina esteve a ocupar o lote entre os anos trinta e setenta do século passado. Há alguns anos em uma rápida passagem pela Big Apple procurei o local, em vão.
Hopper foi um espectador ávido de cinema, e os críticos notaram a semelhança das suas pinturas com cenas de filmes. Várias das suas pinturas sugerem filmes de gângsteres dos anos trinta, tal como a primeira versão de “Scarface”.
O pintor não só foi influenciado, mas influenciou o cinema. Win Wenders recria “Nighthawks” como o cenário de um filme-dentro-um-filme em “The end of Violence”, não esquecendo ainda todo cinema noir e neonoir (seja lá o que isso signifique), basta o exemplo do clássico “Blade Runner”. Em uma entrevista, o diretor Ridley Scott afirmou que andava sempre com uma cópia da pintura debaixo do nariz da equipe de produção para ilustrar o aspecto e a sensação que procurava para o filme.
Esse tal sentimento coletivo ou generalizado parece com o que estamos a experimentar em terras brasileiras, ao menos em minha bolha social que, em termos buarquianos, chamo de “minha gente”.
Tudo começou naquele fatídico agosto, de dois anos atrás, quando um desgostoso golpe travestido de impeachment se cumpriu diante de nossos olhos absortos, sendo que ainda fomos obrigados a ver um facínora elogiador de torturadores e ditaduras chegar ao poder, ironicamente, através da democracia que ele tanto avilta.
Desde então, a rotina matinal do brasileiro lúcido consiste em tomar café e contrariado acompanhar a mais nova barbárie ou asneira promovida pelo atual desgoverno, seja pelo jornal ou pela corrente de whatsapp difundida pelo tio reaça. Até então, só o futebol nos permitira tal cumplicidade nacional, nas duas copas que sediamos, assim vamos demonstrando com o tempo que somos cordiais até com a nossa própria desgraça.
De toda a sorte, a melancolia não é necessariamente ruim, em algumas circunstâncias até se torna necessária para que reconheçamos certos aspectos da vida. Ela nos permite viver num estado de clareza de consciência, o equilíbrio que há no meio do caminho entre o coach e o emo, além de em muitos casos promover um estado criativo, potencializar certas habilidades, afinal, “sem um bocado de tristeza não se faz um samba não” e com a tinta por ela produzida que Brás Cubas redigiu suas memórias póstumas.
Admito que para um canceriano, com lua em câncer, não é muito difícil atingir tal condição: basta ler “tabacaria”, do Pessoa, divinamente (mas sem metafísica) recitado pelo saudoso Antônio Abujamra, ouvir “don’t think twice it’s all right” do Dylan, ou qualquer canção sombria do Tom Waits (que no disco “nighthawks at the diner” se inspira na pintura de Hopper), ver um daqueles episódios tristes de Chaves, uma derrota do Corinthians (não tem sido frequente), um desengano da morena, ou simplesmente uma persistente chuva, típica da Amazônia, ou se pá tudo junto, para reproduzirmos mentalmente o memorável monólogo do recém falecido Rutger Rauer, interpretando o replicante de Blade Runner: “ll those moments will be lost in time, like tears in rain”.

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