quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Crônica das Ruas (Borges e o Engraxate)


Não sei se foi Jorge Luis Borges ou um engraxate que me disse: “as ruas de minha cidade já são minhas entranhas”. Por costume interiorano, criado antes das facilidades tecnológicas, ou por minha alma de velho mesmo, adoro identificar ruas e memorizar seus respectivos nomes. Nasci na Rua Borba, mas logo fui levado para a Rua J. Carlos Antony; só em Manaus vivi ainda na Belo Horizonte, na Parintins, na Leonardo Malcher, na Constantino Nery, na Maneca Marques que também já tinha sido Grande Otelo e, bem antes, Perimetral. Vivi ainda na Rua Vitória em Fortaleza, na 22 de julho em Juazeiro do Norte, na Monsenhor Esmeraldo no Crato, na Alameda Jaú em São Paulo. Bem sei que é um costume que caiu em desuso, em tempos de GPS, nem os taxistas parecem ter o interesse em memorizar nomes de ruas e com isso ignoramos também um pouco de nossa história.

Que me perdoem San José na Costa Rica, where the streets have no name, bem como Brasília com suas siglas e números frios. Quando passei uma temporada em nossa capital federal fui obrigado a andar com uma espécie de código cifrado no bolso que entregava ao condutor na vã esperança de que me deixasse em minha morada provisória. Quanto desgosto! Me aferrava ao papel no temor infantil de perdê-lo e com ele qualquer chance de um dia encontrar minha própria casa.

Ruas precisam de nome, não precisa ser nome de gente importante, que se faça tal qual o pai de um amigo que, como servidor público, batizou uma rua não catalogada no Crato com o seu próprio nome para fins de registro administrativo. O nome fornece identidade, humaniza o impessoal, aproxima o improvável historicamente. O que José Clemente e Lobo D’Almada conversam na calada da noite na esquina em que se encontram? O que Saldanha Marinho tem a dizer ao Joaquim Sarmento?

Toda cidade que se presa no Brasil precisa de uma Getúlio Vargas, de uma Santos Dumont, Duque de Caxias, Dom Pedro (o I e o II), embora considere que precisemos bem mais de Avenidas Anita Garibaldi, Antonio Conselheiro, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Euclides da Cunha. Eu tenho um bairro todo projetado em minha mente, só falta quem o execute: que delicioso seria a Milton Nascimento encontrando a Mário Quintana ou a Chico Buarque desembocar na Alameda Lô Borges. Cruzando todas as vias teríamos o Boulevard de Los Suenos Rotos (ou Avenida Joaquin Sabina) seguindo em paralelo com a Positively 4th Street.

Antes de viajar para alguma cidade ainda desconhecida trato de conhecer o mapa da região principal e memorizar o nome das ruas. Graças ao costume, andei por Havana e sua Ciudad Vieja como um velho visitante e sei quantas ruas cortam a Calle Obispo, entre elas a Calle Cuba onde me hospedei, assim como sei quantas ruas cortam a São Benedito em Juazeiro do Norte, cidade mais católica impossível tendo como ruas principais São Pedro e Paulo e quando esgotado todo o rol sagrado tascaram uma Rua Todos os Santos. O sincretismo é inevitável já que toda rua tem suas encruzilhadas.

Com o tempo temos nossas ruas prediletas, por razões e memórias afetivas em regra geral, outras por paixão gratuita só pela beleza do lugar. Como eu amo a Monsenhor Coutinho, a Carmen Miranda e a Rua dos Barés em Manaus, a Calle Soriano (a mais bela no outono em Montevidéu), a Serrano em Buenos Aires, o Paseo del Prado em Havana, a Apeninos e a Consolação em São Paulo, a Dom Pedro em Juazeiro do Norte, a Rua da Saudade no Crato, a rua da Estrela e a Afonso Penna em São Luis, a Dom Pedrito em Porto Alegre, a Divinópolis e a Paraisópolis em Belo Horizonte, a Rue D’Orsay em Paris, a lista é extensa. Minha paixão por ruas é tamanha que fiz uma amiga em visita à Cidade do México encontrar e conhecer a famigerada Calle Bucareli tão narrada pelo escritor Roberto Bolano.

Ainda existem muitas ruas que compõem meu imaginário afetivo e poético que pretendo conhecer ou revisitar. Não alimento nenhuma expectativa do gênero, tampouco pretensão, mas se quisessem me homenagear de bom grado, ainda que postumamente, que batizassem uma rua com meu nome. Não exijo nenhuma avenida principal ou boulevard florido, bastava uma simples travessa. Já até imagino um transeunte perdido recebendo a resposta esclarecedora: "Você pega a Juan Pablo Gomes direto e dobra na segunda à esquerda".

Na verdade, não precisaria levar a algum lugar, poderia ser um beco sem saída mesmo. Todos desejamos nos perpetuar de alguma forma, embora essa seja a mais singela forma de ser esquecido, como na canção do Clube da Esquina: “Passa bonde, passa boiada/ Passa trator, avião/ Ruas e reis/ Guajajaras, Tamoios, Tapuias/ Tubinambás, Aimorés/ Todos no chão/ A cidade plantou no coração/ Tantos nomes de quem morreu”... Quem hoje sabe quem foi Quintino Bocaiuva? E você? Que rua jamais esquecerá?

Nenhum comentário:

Postar um comentário