terça-feira, 4 de dezembro de 2018
Um céu com preás e sem homens sórdidos
Não sei se foi Mark Twain ou o carteiro de minha rua que me garantiu que todo cão é um cavalheiro e que preferia o céu deles ao dos homens. Um céu de preás, como o da cachorra Baleia de Graciliano, me parece muito mais singelo e atrativo que qualquer concepção paradisíaca tediosa eleita pelos homens e suas metafísicas que não passam de chocolates, como diria Pessoa.
Cresci e vivi com estas criaturas que parecem ter vindo ao mundo para trazer um pouco de alento e doçura ao “horror” conradiano (que não sei se gostava de cães) de nossas existências. A primeira foi Monalisa, vira-lata da mais honrada estirpe, caçadora impiedosa de mucuras e outros seres que ousassem invadir nossas cercanias. Ela está presente na maior parte das minhas fotos de infância e foi minha melhor e única amiga por anos, companheira de um garoto asmático criado como filho único e que pouco saia de casa, tendo seu quintal como mundo particular e sua cadela como fiel escudeira. Ainda na infância tive o Lupicínio Rodrigues, ou o Lupi, um dócil e bobo vira-lata com traços de pastor alemão. Todos se foram, atropelados pela vida, essa miserável e ingrata vida.
Muitos anos depois, no meu primeiro casamento, veio o Julien Sorel, ou só Julien. O plano inicial era uma fêmea shar-pei, mas todas que apanhamos na ninhada do canil choramingavam muito e pareciam assustadas. Peguei um machinho como quem não quer nada, quase cabia na palma da mão e ele se desmanchou todo no meu colo. Muitas vezes não escolhemos o cão, ele nos escolhe. Se fosse contar todas as histórias do Julien renderia um livro. Como quando ele ficava cabisbaixo no pé da porta nos esperando voltar para casa. Como quando ele escapou quando abri o portão e eu tive que ir para uma audiência com o terno todo enlameado por conta do resgate. Como quando ele via os jogos do Corinthians comigo e até hoje rosna e tenta morder o atual marido são-paulino da minha ex-mulher ao comemorar gols do tricolor paulista.
Há menos de dois anos veio o Nicolai Vasilievich Gogol, ou simplesmente Gogol. Um husky siberiano em Manaus não estava nos planos, mas aconteceu. Na primeira noite no apartamento já definira seus lugares favoritos no mundo: aos meus pés no chão gelado do quarto em dezoito graus (haja ar-condicionado) enquanto eu escrevia madrugada adentro ou no suporte inferior da porta da geladeira quando alguém desavisadamente a deixava aberta tempo suficiente para ele pular para dentro. Hoje não cabe sequer num freezer, assim como todo seu amor.
Existem outras fofuras em minha vida que não podem passar sem nota: como o Bruce, o pug destemido da Aline Nobile, em nossa relação de amor conquistada através de subornos e propinas furtivas como pedaços de pizza, pão, calabresa e outras delícias oferecidas sigilosamente fora do olhar de sua severa mãe. Temos Joelma, a lambedora incansável de cadelas de bêbados, filhinha dos meus amigos Tarsizio e Mariana. Vale o registro da bela matilha formada ainda pelo meu amigo Guaraciaba Tupinambá.
“Por tanto amor, por tanta razão”, confesso a fraqueza de ser incapaz de ver filmes, notícias ou qualquer coisa triste que envolva cães. Nós não os merecemos é bem verdade. Muito deveríamos aprender com eles, como bem sabia Diógenes, que se utilizava do comportamento canino para pautar toda sua ética e moral. Os cães sabem instintivamente diferenciar amigos de inimigos: para os primeiros toda a lealdade e favores, aos segundos rosnadas, mordidas e rigores. Das anedotas sobre Diógenes surgiram os termos “cinismo” e “cínico”, que derivam da palavra grega “knykos”, que por sua vez significa cão. Assim como ser maquiavélico, ser cínico não quer dizer necessariamente algo ruim. Ser comparado com um cão muito menos.
Segundo Diógenes, os humanos, em sua hipocrisia, vivem artificialmente, enquanto poderiam aprender com os cães que realizam todas as suas funções corporais em público, comem o que é necessário e dormem no mínimo de comodidade, vivendo um eterno presente, mas sem, contudo, enganarem uns aos outros ou se corromperem.
Quão corrompido é o homem que mata um animal indefeso cumprindo cegamente ordens de seu superior? Quão frio pode ser um homem que determina a morte de um ser inocente em nome da assepsia e bom funcionamento da máquina capitalista?
Espero sinceramente que o Senhor das Esferas faça o favor de dar vitória teológica aos defensores da tese de que animais têm alma e, por conseguinte, céu. Um céu de preás, bolas, ossinhos e guloseimas. Um céu com um campo verdejante para que corram livres e alegres sem qualquer sombra de dor ou suplício. Eles merecem. Nós homens, eu já não sei. Fico nesta vida com a mais sublime forma de alegria e felicidade: um cão contente lambendo nossa face.

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