quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Somente os casais fitness são felizes


Não sei se foi Bukowski ou entregador de pizza que me disse que o amor é bom somente para os que aguentam a sobrecarga psíquica. O certo é que somente os casais fitness são felizes. Daqueles que fazem selfie no espelho do elevador, dividem receitas de detox e sabem as inúmeras variações do açaí com granola.

O dueto possui um léxico próprio que envolve stand-up, sup, namastê, gratidão. Importante ter fotos juntos no perfil, mesmo sendo de graça a conta no facebook. Feita a fusão dão ao mundo o novo ser ou entidade: o casal.

Casal que malha unido, permanece unido. Construíram uma imagem ideal um para o outro e se conseguirem permanecer correspondendo ao paradigma montando continuarão unidos; provavelmente não, mas melhor não revelarmos ainda, sem spoiler.

Existe um outro tipo de casal, que fatalmente não será feliz (pois somente os casais fitness são felizes), mas que me parece maravilhosamente mais interessante.

Ele se olha no espelho e conta mais um dedo de espaço na testa amargando as entradas precoces, como se não bastassem os cabelos brancos, olha pra baixo e registra mais um dedo de barriga também. Ele promete parar de beber pela milésima vez, promessa que dura enquanto surtem os efeitos da ressaca.

Ela acorda sem voz, rouca, por ter fumado e falado na noite anterior feito uma apresentadora de programa vespertino de auditório. Ela promete pela milésima vez que vai parar de fumar, ou de teimar nos mesmos assuntos. Sempre está por perder três quilos. Ela possui aquela gordurinha lateral na cintura, linda, chamada de cartucheira, ou para os íntimos, alcinha do amor. No fim da noite contabiliza estrias e celulites aquelas coisas que nós homens ignoramos completamente (junto com o clitóris).

O último casal pode até não ser feliz, já que somente os casais fitness são felizes, mas podem experimentar de vários raros momentos de distração, como diria Guimarães Rosa, se souberem permanecer distraídos, como diria Clarice (a Lispector, não a Falcão), se aprenderem a rir de si próprios e um do outro, se passarem da fase do exigir para o dar sem conta, sem ideais ou ideações.

Não, ele não vai parar de beber. Não, ela não vai parar de fumar. Ele tenta, mas continuará sendo machista, um pouco mais descontruído se houver esforço, verdade, mas sem perder aquele ranço de beatnik tupiniquim. Ela, Beauvoir com rebolado, continuará insegura, continuará fumando, continuará pagando a conta do mundo de ser mulher, vai continuar a ser a teimosa ou a louca dos gatos. Contudo, quando ela vomitar ele estará ao lado segurando seus cabelos e quando da mais simples gripe ele exigir extrema unção e pompas fúnebres, ela estará ao lado também.

Mesmo que somente os casais fitness sejam felizes, isso não quer dizer que o barrigudo indulgente e a maluca dos gatos estejam fadados ao fracasso. Basta que experimentem juntos a chamada meia noite da alma, quando passamos a fazer a contabilidade de nossos erros e acertos da maneira mais sensata e realista possível, sem pedaladas otimistas ou os delírios juvenis megalomaníacos, nem o remorso e a culpa constante do que não conseguimos ser.

Se ambos conseguirem não exigir do outro, nada além da tentativa de ser simplesmente o que é, nem que seja um tentar ser o melhor para si e para o outro, a única dor no abdômen que sentirão é a dos risos a dois.

Quem sabe até ela o faça pegar o violão e o convença a voltar a tocar dizendo: “meu amor, vá além daqueles que cantaram que a tempestade que chega é da cor dos meus olhos castanhos”. Quem sabe ele secretamente inclua linhaça no suco pois pesquisou e dizem que faz bem e ele quer muito, mas muito, ficar mais um pouco com ela. Quem sabe passem a comer a salada no rodizio. Quem sabe uma becel...

E como o ser humano não é estanque, estamos em contínuo movimento e transformação, como Heráclito preferia ser, já na Grécia Antiga uma metamorfose ambulante, quem sabe os dois não se deliciem com as modificações um do outro, desde o corte de cabelo até os interesses mais triviais.

Eles não foram o primeiro amor um do outro, os discos, os livros e memórias estão cheios de presenças distantes de outros que passaram, pouco importa, “eles passaram e passarão, você passarinho”. Quem sabe assim, ela a eterna gatinha, ele o eterno crush, poderão experimentar algo inefável que alguns teimam ainda em chamar (por não haver outro nome) de felicidade.

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