quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Hoje por mim os sinos dobram



Quem me dera contemplar a cena
Das horas minhas depois de findo
Implodido pelo coágulo exato
Ou colhido pelo condutor precipitado
Ao atravessar a via distraído.

Quem me dera contemplar a cena
Mamãe a engomar meu paletó
Meu pai a polir a vã medalha
A bandeira corinthiana feita de mortalha
Minha irmã em prantos de dar dó.

Quem me dera contemplar a cena
A vizinhança se aproxima
“Tão moço, tanto por viver”
“Você chegou a conhecer”?
Minha tia a todos se lastima.

Quem me dera contemplar a cena
Da minha celebração nem tão concorrida
Maritza junto ao ataúde debruçada
Nayane aos meus pés desencantada
Luana sofre mais contida.

Quem me dera contemplar a cena
Esperava alguma delas sapatear no esquife
Ou qualquer outra extravagância
Mas o ego é luxo de quem vive
Morrer é não se dar tanta importância.

Quem me dera contemplar a cena
Keline não aparece, porém manda uma coroa...
Jurou cuspir em meu caixão
Eis que chegou à conclusão
De que não vale enfrentar tal fila à toa.

Quem me dera contemplar a cena
Servem as bolachas e o café
Lu proseia com Aline entorpecida
Distante, absorta, em pé
Ariadne fuma enternecida.

Quem me dera contemplar a cena
Uma hoste de ébrios invadindo a sala
“Até das lágrimas o álcool exala”
Acenaria em singelo gracejo
Aos confrades num último festejo.

Quem me dera contemplar a cena
Das informações acerca de minha morte
Que chegaram atrasadas em Lisboa
Onde Tainah imprime na mão um corte
Na sanha por um suplício que pior lhe doa.

Quem me dera contemplar a cena
No velório a amarga a ausência
De Hingrid infeliz que vai de tonta*
Em insaciável abstinência
Em nosso botequim fechando a conta.

Quem me dera contemplar a cena
Anne considerando a velha vitrola
De seu esposo se faz acompanhada
Há de ouvir nossa canção de outrora
Escapando um gemido embaraçada.

Quem me dera contemplar a cena
Kigenes ensaiando seu discurso
Lá de fora um cão ladra
Um menino pontapeia a lata
Valesca sufoca seu soluço.

Quem me dera contemplar a cena
A mão do frade me abençoa
“Cumpriu ele sua própria sina”
No campanário o sino ressoa
A vida irrompe em mais um dia.

Quem me dera contemplar a cena
Cavalheiros dispostos a oferecer consolo
A cada uma por mim amada
Sempre há de ter uma alma desinteressada
Essa meditação me oferece algum conforto.

Quem me dera contemplar a cena
Junto a uma adaga e branca luva
Deixo um bilhete fosco não endereçado
Como espólio num garrancho mal borrado
“Vês que já és minha única viúva”**.




* Referência ao poema "Dia da criação" do Vinicius de Moraes.

** Referência ao verso de Ruy Belo "tu és já minha única viúva".


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