sexta-feira, 10 de maio de 2019
As travessuras da menina má [Dom Casmurro e o Leiteiro]
Não sei se foi Dom Casmurro ou o leiteiro que me atentou para o risco que todo homem enciumado experimenta: contaminar de uma astúcia, até então inexistente, a mulher alvo de sua desconfiança.
Ou seja, o corno por antecipação, em sua ânsia, acaba por esquentar o leito de sua própria desventura, ainda que bem advirta Caetano sobre a desnecessidade de se falar da malícia de toda mulher.
Me cai tardiamente em mãos um Vargas Llosa, já oitentão, passando em revista as agruras de Ricardo e seu amor bandido pela chilenita, ou Lily, ou Arlette, ou madame Arnoux, ou Mrs. Richardson, ou Kuriko, ou apenas a menina má em suas inúmeras metamorfoses e travessuras, desde as lembranças idílicas de uma infância nos anos cinquenta em Miraflores, bairro nobre de Lima, passando pela Paris revolucionária dos anos sessenta, a efervescente Londres hippie dos anos setenta, a exótica Tóquio com seus mafiosos impiedosos e a Madrid em transição política e social nos anos oitenta.
Ao longo da vida, Ricardo é constantemente revisitado por essa mulher de mil faces que toma de assalto a inércia de sua vida desprovida de maiores ambições e aventuras, sempre deixando-o ao final desolado e a ver navios, mudando-se apenas o cenário e tempo de cada desdita.
O tema da perfidez feminina é mais velho que o mundo e a posição de sentar (do gênesis aos boleros de açougueiro), mas em Llosa a infidelidade da mulher ganha outra nuance, bem distante da sisudez machadiana.
O curioso é que aos poucos, em cada golpe e deslealdade, mais vamos nos identificando com a sordidez de Lily, seu pragmatismo que se recusa a amar e demonstrar sentimentos, mas que se deleita, ainda que faça pouco caso, das breguices e da paixão obsessiva de Ricardo.
A verdade é que nenhuma das vilezas da menina má se comparam com as humilhações que experimenta ao longo da vida pelo preço que paga por ser livre, desde a pecha de uma infância miserável convivendo com a arrogância e preconceitos burgueses, até a violência sexual que se submete petrificada num mundo construído pelos homens e para os homens, onde a cobiça, seja pelo poder ou lascívia, a tudo domina e devora.
Interessante é que as travessuras da menina má foram publicadas pouco depois das memórias das putas tristes de Garcia Márquez, outro quase oitentão na época, ambas as obras seriam o canto do cisne de seus respectivos autores se não fosse a longevidade intelectual e produtiva de Llosa que lhe rendeu frutos posteriores.
Aqui a cisão dos dois maiores escritores hispano-americanos (ao lado de Borges) vai além da notória diferença política (Llosa coxinha – Márquez mortadela), a forma como as mulheres são retratadas chegam a ser antagônicas: se no colombiano a figura feminina é insondável em seus silêncios, idealizada sempre enquanto alvo passivo e necessário da pulsão masculina, no peruano ela é voluntariosa, confunde no que diz e é intraduzível no querer e nas birras que movimentam a vida, indiretamente, afetando o destino de todos.
Na peleja do homem bobo devotado e da mulher dissimulada há algo muito belo e humano que volta e meia nos escapa. O que poucos homens estão dispostos a compreender é que a rebelião feminina, que se recusa a adequar-se aos padrões de afeto e moralidade, a mulher que salta do pedestal onde séculos, da religião ao romantismo, a encastelaram num tedioso papel de musa ou figura sacra, também liberta o homem e seus paradigmas aprisionantes e aprisionadores, nos retira da modorra e do tédio do papai-mamãe, nos tira do lugar comum, do tédio de um arquétipo engessado de casal e relacionamento.
É preciso uma vida inteira para que Ricardo entenda o seu amor e sua amada, não se sabe ao final se o seu êxito decorre de sua paixão fervorosa ou apenas de sua condição resoluta, pois sabe que se sofre com ela, pior fica em sua ausência.
Assim a conquista, meio sem querer, a atinge sem bússola ou fórmula, vence por pontos quando compreende que o charme e beleza de sua amada estão justamente em seus caprichos, como o mar, uma fêmea traiçoeira, dessas que dizem “sim, mas não”, “não, mas sim”, como vaticina o velho esfarrapado que conversava com o Pacífico, sempre consultado pelos engenheiros peruanos antes da construção de qualquer quebra-mar, já que suas previsões inexplicáveis eram muito mais acertadas do que qualquer outra que empregasse toda a lógica ou matemática existente.
Bem-aventurado o que teve uma bandida em sua vida, como a Rosa de Chico, que sai pra comprar cigarro e some, que troca o nosso nome, que arrasa o nosso projeto de vida e que nos perdoa por nos trair. Bom mesmo é ser homem de malandra.

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