segunda-feira, 22 de junho de 2020

Crônica da Teoria dos Trens e Momentos Luminosos (Levrero e a Cartomante)


“Por instantes, minha vida atual parece viajar num ônibus a toda velocidade; está cheio de gente amontoada, não para nunca, não consigo ver o motorista nem tenho a menor ideia de para onde está indo”.
Mario Levrero

Não sei se foi o próprio Mario Levrero ou minha cartomante que me disse dos tais momentos luminosos, lampejos quase epifânicos em que a distribuição violenta e aleatória dos fatos sucessivos da vida de alguma forma parece fazer sentido, por um instante, ou ter uma espécie de conexão sutil.

Acordei por volta da meia noite. Há meses, desde o início da quarentena, passei a adotar a rotina de dormir durante as tardes e trabalhar madrugada adentro, aproveitando volta e meia um pouco das manhãs. Pensar que passei a vida inteira as difamando, aonde ia, para hoje descobrir que as adoro. O amanhecer, o raiar do dia, a promessa inevitável de algo, ainda que não vá se confirmar, como viver sem isso? Meus problemas na verdade são as tardes, mal digestas depois do almoço, abafadas, tediosas, improdutivas, frustrantes, descoberta pessoal vinda apenas com os trinta. Meu trabalho permite preenchê-las dormindo, quando o vizinho em obra assim o permite.

Quase que de forma maquinal, neste final de domingo (sempre eles), logo ao acordar, liguei o televisor e fui rever “Before Sunrise” do Richard Linklater, com os belíssimos Ethaw Hanke e Julie Delpy. Não foi algo tão abrupto e repentino assim, diga-se de passagem, já planejava revê-lo, talvez pela data, dezesseis e dezessete de junho, remeter ao filme e ao encontro de Jesse e Celine, mas não esperava que isso fosse se dar como um imperativo de alguém recém desperto.

Da trilogia “before” foi o filme que menos vi, ou que menos minha memória preservou certas passagens, embora nunca tenha me esquecido de algumas cenas memoráveis como a leitora de mãos, o vagabundo vienense, os atores amadores e sua vaca excêntrica, o vinho implorado e a madrugada no parque.

“Before Sunrise” é um daqueles filmes, obras, que você reencontra várias vezes em momentos distintos da vida, sempre encontrando uma nova nuance, uma leitura ou emoção nova possível, mas confesso que dessa vez nem foi tanto a questão amorosa que me afetou, mas o tempo e sua irredutibilidade.

Quase com espanto aristotélico percebi que o filme já tem seus vinte e cinco anos, a idade aproximada dos atores quando da gravação, a minha idade de sonho, de sangue e de América do Sul que um dia tive e não voltarei a ter.

Como em todos os filmes do Linklater, a narrativa está repleta de referências poéticas, em especial uma das últimas cenas, já na manhã de despedida, largados na praça, Jesse recita um trecho de “As i walked out of one evening” de W. H. Auden: “years shall run like rabbits”.
Sim, momento de constatação do óbvio ululante: os anos e a juventude se vão num estalar de dedos e parece que junto com eles a capacidade de se apaixonar e se encantar pela vida e por outrem. Senti-me tomado pelo que o velho uruguaio Mario Levrero chamava de “angústia difusa”, que surge como que do nada, em muitos momentos a partir dos mais banais episódios.

“A pessoa tende a perceber as coisas de tal modo que possam integrar-se bem à rotina de seus dias, se qualquer coisa em nós parasse para perceber seja lá o que fosse, com a intensidade que qualquer coisa que fosse merece, não haveria rotina possível, nem contrato social possível”. Lembrei-me de imediato de seu “Romance Luminoso” que li recentemente assim que cheguei de minha última viagem, antes da pandemia, pelo Peru.

Em certa passagem, quando ele menciona uma insólita experiência de contato quase místico com uma rocha numa praia, “não espere que eu conte o que conversamos com a rocha, pois não sei, mas tenho certeza de que nós dois aprendemos segredos da vida que, depois, foram aflorando aos poucos, nos momentos de necessidade”, me veio na memória a conversa que tive com um esmoleu em Cusco.

Estava sentado diante da Plaza de Armas com minha ex-namorada quando ele nos abordou. Talvez por ouvir nossa voz e sotaque quando de sua aproximação, já chegou falando em português. Sentou ao meu lado e contou um pouco de sua história. Não sei se precisava mais ser ouvido do que pedir dinheiro, ou se era apenas parte de sua estratégia de contato, em resumo, contou uma confusa história que envolvia uma mulher e uma filha em Barcelona, a tentativa de obter um visto na embaixada brasileira em Lima e como dispendera todos os seus recursos passando a viver nas ruas da capital inca.
Não estava muito disposto a conversar no dia, mas me deixei levar e conversamos um pouco sobre a conhecida ferida aberta latino-americana chamada colonização, de como o Peru e sua beleza mística provocavam um sentimento ambíguo de encantamento e melancolia, como pensar que uma civilização tão avançada conseguiu ser simplesmente dizimada por uma centena de bêbados espanhóis promíscuos.

Em algum momento da conversa, o sujeito, que se dizia de Belém, mas não possuía nenhum sotaque paraense, algo mais sul mato-grossense, passou a defender uma curiosa tese. Segundo ele, o mofo e o limo das pedras usadas nas construções incas, ao longo de séculos, concentravam propriedades extremamente nocivas ao organismo humano, um veneno silencioso e atroz capaz de matar qualquer um ao longo dos dias. O paliativo, ou antidoto para tal efeito, estava em ervas e preparos mantidos em sigilo pelos nativos, que guardavam pra si a receita e o uso diário (algo como quinino), deixando estrangeiros morrerem pouco a pouco na ignorância de seu encanto e abobalhamento turístico, tudo numa espécie de vingança histórica ardilosamente concebida.

Daí passou a narrar como os peruanos possuíam uma xenofobia velada que só ele e alguns poucos desprovidos de dinheiro e status experimentavam. Terminou falando de como ansiava voltar ao Brasil ou conseguir chegar até a Catalunha e reencontrar a mulher a filha.

Pra quem havia saído do Brasil exausto de delírios e teorias da conspiração obviamente meu humor não estava o mais receptivo para tal tipo de narrativa, mesmo assim lhe dei algumas moedas que não lhe pareceram satisfatórias, dada a nítida cara de contrariado quando se despediu. Assim ficamos, eu e minha ex-namorada, ruminando quais parcelas, de toda aquela longa história, poderiam merecer crédito ou não.

Em parte, bem que poderia ser possível, me agradaria pensar que por trás daquela hospitalidade quase subserviente que encontramos nos peruanos houvesse alguma forma de revanchismo anticolonial. De toda sorte, não consegui mais olhar as pedras justapostas em Cusco da mesma forma.
Partimos no mesmo dia de trem. Trem, ou a metáfora de trem que encontrei em Levrero assim que voltei ao Brasil diante de sua teoria existencial. Segundo Levrero “a pessoa vai tomando trens que vão para diferentes destinos e andam a diferentes velocidades, e toma vários trens ao mesmo tempo, alguns que viajam inclusive em sentido oposto”.

A vida, segundo o uruguaio, seria uma grande estação móvel de trem, da qual partem continuamente trens que chegarão ou não ao seu destino, que voltarão ou não à estação, “portando cada um deles um pequeno eu ansioso, com seu rosto amarelado colado à janela e os olhos muitos abertos”. Saber combinar o andamento dos trens em conjunto é a arte da escrita, como seria a arte de viver saber combiná-los na vida real, ambas as artes desconheço completamente como essa crônica e minha experiência existencial atestam.

"Andábamos sin buscarnos pero sabiendo que andábamos para encontrarnos”, o verso de Cortazar bem poderia ser a epígrafe ou o mote do encontro de Jesse e Celina no trem austríaco e quão luminoso foi o instante em que saltam em Viena e passam a usufruir de seu breve e intenso idílio amoroso.
Não estranhe o leitor que empreendeu o tour de force que é concluir a leitura desta extensa crônica a inserção de tal frase, ela me remete a tal ex-namorada por ser a frase que mantínhamos em concomitância no status de um aplicativo de celular quando nos conhecemos e nos espantamos com tal coincidência, assim como coincidência semelhante pensar que um certo alguém estaria a ver “Before Sunrise” praticamente no mesmo horário em que o revi neste incauto domingo.

Certo mesmo sempre é o tempo, como sabiamente mencionou Auden, morto na Viena cenário do filme de Linklater:
“The years shall run like rabbits/ For in my arms I hold/ The Flower of the Ages/ And the first love of the world/ But all the clocks in the city/ Began to whirr and chime: 'o let not Time deceive you, you cannot conquer Time/ 'In the burrows of the Nightmare/ Where Justice naked is,/ Time watches from the shadow /And coughs when you would kiss./ 'In headaches and in orry/ Vaguely life leaks away, / And Time will have his fancy / Tomorrow or today”.

O tempo sempre triunfa sobre todos nós, cedo ou tarde.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Crônica da América Latina [Bolano e o Vigia]




Não sei se foi Roberto Bolaño ou vigia do meu prédio que me disse que da violência, da verdadeira violência, não se pode escapar, pelo menos não nós, os nascidos na América Latina.

Há trinta anos, Gabriel García Márquez (1927-2014) lançava “O General em seu Labirinto”, obra fictícia (como toda a América Latina) que retrata os últimos dias de Simón Bolívar (1783-1830), o homem que um dia ousou sonhar com uma pátria latino-americana unificada do México até a Terra do Fogo, essa pátria formada por um “pueblo sin piernas, pero que camina”, como na canção de Calle 13.

O que mais impressiona na obra de Gabo é o contraste da figura mazelada, débil e enfraquecida do General Libertador com seu mítico passado repleto de glórias e façanhas.
Bolívar esconjura o túmulo com espírito enérgico, mas sabe que o destino derradeiro é inevitável.

Acompanhado apenas de seu servo fiel, o General parte rumo ao exílio, assombrado por seus fantasmas e delírios de grandeza (seu próprio labirinto) e leva consigo seu único tesouro em inúmeras arcas: uma vasta biblioteca que resistiu aos longos anos de combates, fugas e moradias provisórias. Talvez um símbolo de que um povo não constrói uma nação sem livros.

Em tempos em que a expressão “bolivariana” é muito mal empregada, e até difamada, urge resgatar o legado do libertador, dos libertadores que dão nome ao principal torneio futebolístico da região, cuja final foi retirada de Santiago por conta da linda primavera Mapuche que clama por uma velha e nunca ultrapassada bandeira: a luta pela igualdade.

Parece-me que para quem vive em condições totalmente adversas, como as nossas, não pode se permitir ser pessimista, torna-se imperiosa a esperança, uma esperança lúcida que compreende que não há conquista sem luta. Certo Mujica ao dizer que a esquerda latino-americana falhou ao formar consumidores e não cidadãos, ao crer que a mínima distribuição de renda promoveria consciência de classe.

Falhamos. O povo vem desistindo do sonho de igualdade e encontra amparo no ópio fascista neopentecostal de um paraíso além-mundo que ainda promete prosperidade terrena.
De bíblia em punho o Palácio Quemado na Bolívia é invadido por uma insólita aliança entre fundamentalistas religiosos e milicos (sempre eles), a mesma bíblia trazida pelo colonizador (junto com a sífilis).

Quando Evo e Linera embarcam para o exílio no México (assim como o Guatemalteco Guzmán há 65 anos no primeiro golpe contra a América Latina patrocinado pelos EUA) um sonho se desfaz melancolicamente: a aliança entre um dos mais proeminentes líderes indígenas dos últimos tempos com um dos mais notáveis intelectuais da região.

Não deixa de ser simbólica a ânsia dos golpistas em destruir a biblioteca de Álvaro García Linera, estimada em mais de trinta mil exemplares, a distopia de “Fahrenheit 451” é aqui, por estas paragens quase todos os dias uma Biblioteca de Alexandria arde em chamas.

Uma árdua e dura lição vem sendo ensinada para a nossa geração que não viveu os horrores das recentes ditaduras militares e que dispersou sua identidade no fetichismo pop-liberal: sem luta não há justiça social, sem educação não há democracia, sem entendermos quem somos não sabemos para onde vamos.

Somos Lautaro, somos Bolívar, somos Victor Jara, somos Chico Buarque e Milton, somos Mercedes Sosa e Violeta Parra, somos Marielle. Por estas bandas é preciso todo dia se reconquistar a liberdade de um Lula, é preciso todo dia se recompor a biblioteca de um Linera.

domingo, 29 de setembro de 2019

Crônica do Amor de Pica segundo B. Schianberg ou "Cohen e o Proctologista"




Não sei se foi Leonard Cohen ou meu proctologista que me disse que o amor não tem cura, mas é o remédio para todos os demais males, faltou especificar apenas qual espécie de amor está em jogo. A máxima ecoa na mente após a leitura do “eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, frase de para-choque de caminhão que dá título ao excelente romance de Marçal Aquino que narra a tórrida relação entre o fotógrafo Cauby (igual o cantor) e Lavínia (lindo nome feminino que combina com lascívia).

Acompanhando a ascensão e desgraça de Cauby, não tem como não sentir inveja até de sua dor. Que se dane Cazuza e “sua sorte de um amor tranquilo”, amor meia-bomba, entorpecente mais vagabundo que loló, ópio do peito, torsilax do afeto, o que em muitos momentos da vida precisamos é de uma paixão arrebatadora, um bom e velho amor de pica.

Terminado o livro do Marçal, fui apanhar os três primeiros discos do Cohen que Bandeira e Calango, do sebo Alienígena em Manaus (onde meu livro está sendo vendido), gentilmente reservaram para mim: "Songs of leonard Cohen (1967), "Sons from a Room (1969) e "Songs of Love and Hate" (1971).

Só em casa, descabaçando os álbuns, percebi o mimo oferecido: um recorte de jornal com uma coluna de Sérgio Martins intitulada “o padrinho da dor” (apelido que consagrou Cohen) descrevendo o belo canto do cisne do poeta e músico canadense na forma do seu derradeiro disco “You want it darker” (2016), no qual ele faz um verdadeiro acerto de contas com Deus, com antigos amores e até consigo próprio. Agora em setembro ele completaria oitenta e cinco anos e em novembro já se vão dois anos de sua partida.

Estou eu agora no meu boteco imaginário com Cohen e Marçal. Cada um narrando e contabilizando seus afetos e desditas por todas as Suzannes, Mariannes e Lavínias da vida. O primeiro não pude conhecer pessoalmente, o segundo encontrei um dia, por acaso, no Conjunto Nacional em SP. Em um dos meus raros momentos de tietagem, pedi de rompante um autógrafo no “luz em agosto”, do Faulkner, que trazia comigo. Marçal educadamente se recusou alegando, razoavelmente, que não autografava livros que não fossem seus. Ironia do destino foi verificar depois que o prefácio da obra era exatamente dele.

Marçal folheia e empilha seus exemplares das obras completas de Benjamin Schianberg, autor fictício de criação sua, enquanto eu revejo e apresento para Cohen trechos do filme “o amor segundo B. Schianberg”. produzido pela TV Cultura inspirado nas lições do mesmo autor. Juntos, concluímos, inspirados na obra do mestre mencionado, que o amor de pica possui sete fases.

A primeira fase é a da febre. O professor Benjamim Schianberg escreveu sobre as tentações em seu livro “O que vemos no mundo”. Segundo ele, “alguns indivíduos sublimam seus desejos, projetando-os num plano apenas mental, e isso é suficiente para satisfazê-los”. Outros, aduz Schianberg, apesar de resistirem com diferentes graus de esforço, acabam por ceder às tentações. São o que ele chama de “homens de sangue quente”.

Queremos o que não podemos ter, diz o professor, o mais obscuro dos filósofos do amor. É normal, saudável. “O que diferencia uma pessoa de outra, ele acrescenta, é o quanto cada um quer o que não pode ter. Nossa ração de poeira das estrelas”.

De acordo com o professor, não é possível determinar o momento exato em que uma pessoa se apaixona. Se fosse, ele afirma, bastaria um termômetro para comprovar sua teoria de que, nesse instante, a temperatura corporal se eleva vários graus. “Uma febre, nossa única sequela divina’’. Schianberg vai além: ao se apaixonar, um “homem de sangue quente” experimenta o desamparo de sentir-se vulnerável. “Ele não caçou, foi caçado”.

Sentir-se vulnerável, talvez o “falling in love” inglês retrate melhor esse estado que o nosso “apaixonar-se”. O indivíduo nessa fase sente-se tão vulnerável como nossa democracia e nossas liberdades, tão delicado quanto a heterossexualidade masculina, um pingo de chuva é capaz de matar-lhe.

A segunda fase é a das fagulhas. Ela pode se iniciar com um roçar de braços, surge como uma descarga elétrica. Segundo Schianberg, “a fase das fagulhas é o momento em que os amantes têm a certeza de que algo vai acontecer em breve para saciar a fome que sentem, e saboreiam a espera, muitas vezes prolongando-a, choques não são incomuns nessa etapa”, sustenta”.

A terceira fase é a da “guerra declarada”, o desejo se torna incontrolável e quando chega ao paroxismo finalmente se realiza, mas não se sacia. Dois “animais na selva suja da rua”, como canta Erasmo, que se entregam e se cobiçam até os limites de suas forças, que se abandonam na lida dos corpos esgotados e ainda se procuram, pernas bambas, sexos doloridos, ansiosos pelo instante possível de se atracarem novamente.

Em tempos obscuros, em que o futuro envolto numa nuvem de fumaça não se enxerga mais, a Amazônia em chamas, agrotóxico posto na mesa, utopias desacreditadas, ciência desmerecida, reforma da previdência que manda para as calendas o descanso derradeiro, o que nos resta senão amar? Amar desesperadamente, de forma apressada e inconsequente, mesmo “num sítio tão frágil e incerto como o mundo”, como diria a poeta portuguesa e escorpiana, Sophia de Mello Breyner Andresen, que completaria cem anos neste infausto dois mil e dezenove.

A quarta fase é a da sintonia. “Muitas vezes, entre os amantes, em adição às afinidades do corpo, surge uma sintonia mental, intelectual, que ao propiciar jogos, provocações e brincadeiras privados acentua ainda mais o caráter de cumplicidade na relação. Casais costumam estabelecer espaços particulares de comunicação, inacessíveis ao restante da manada humana ao redor. Intimidade psíquica”.

É a fase das comidinhas, receitas para depois do amor, como bem vaticina Vinicius. O casal se isola do resto mundo. Fundam um território e idioma próprios, um léxico particular, piadas internas. Para estranhos o casal fica um nojo, afinal as demandas do mundo e das demais pessoas não passam de interrupções e inconvenientes no idílio amoroso. O trabalho se torna enfadonho e um mal necessário apenas, os amantes contam as horas para que possam retornam ao seu bunker, ao seu habitat, ao que efetivamente interessa.

É evidente que tanta intensidade assim sempre acaba mal, nada foi feito pra durar, “que seja eterno enquanto dure, posto que é chama”, aquela conversa toda. Cedo ou tarde alguém vai passar um bom tempo de estadia no heartbreak hotel.

Eis que começa “a grande dança dos erros” mencionada por Clarice Lispector, a quinta fase, a do ocaso. A sucessão de desencontros e desenganos. O amor inadvertidamente cruzando a sutil fronteira do ódio, seu vizinho, pois o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença. Os amantes sentem como um punhal lhes rasgando, um corote queimando, impossível não “rimar amor e dor”, Caetano.

Essa fase é a mais imprevisível de todas. Pode durar dias apenas, mas também anos. O mais cruel é encontrar um jeito de dizer adeus, pois, “that's no way to say goodbye”, retruca Cohen.

A sexta e penúltima fase é a da nostalgia. “A grande desgraça é que as lembranças não bastam para confortar os amantes. Nunca aplacam. Ao contrário: servem só para espicaçar as chagas daqueles que foram condenados à lepra do amor não correspondido”, pondera o professor Schianberg. Todas as memórias produzidas na quarta fase retornam como fantasmas para atormentar o amante. Tudo lembra o ser amado.

Quem nunca viveu o purgatório do “e se”, ou o limbo do “talvez”. Talvez, talvez. No reino amoroso, o professor Schianberg ensina, o “talvez” é moeda sem nenhum valor. “Talvez se eu tivesse perdido aquele avião, talvez se não tivesse tomado aquele trem, quando ainda existiam trens. Se tivesse ido para outro lugar”...

Há quem diga que a cura de um amor antigo é um novo amor. O problema é superar a STTL, ou “Síndrome de Transferência Total de Libido”, na definição do professor Schianberg. Em geral, “poucos homens são fieis de verdade, tudo depende da oportunidade e da temperatura do sangue do homem em questão, em alguns casos, contudo, o indivíduo se apaixona com um grau de entrega tal que toda a sua libido se transfere, de modo exclusivo, para o objeto amado”. O amor de pica descamba pra obsessão.

Há quem defenda que aqui se encerra a trajetória do amor, há quem defenda que existe uma última, uma espécie de posfácio. A sétima fase seria a da aceitação. A mesma aceitação que experimentamos pela manhã, quando resolutos, levantamos da cama para enfrentar mais um dia, a mesma aceitação de quem se acostuma com uma cicatriz recente, ou quando, ainda tontos, nos dispomos a deixar a mesa do bar, com ou sem saideira. Pois, no fundo, lá no fundo, sempre sabemos que uma hora é preciso fechar a conta.

“O que acontece é que, quando estou com você, eu me perdoo por todas as lutas que a vida venceu por pontos e me esqueço completamente que gente como eu, no fim, acaba saindo mais cedo de bares, de brigas e de amores para não pagar a conta. Isso eu poderia ter dito a ela”, observa Marçal. “Mas não disse”.

sábado, 24 de agosto de 2019

O Peso da Fumaça [Quintana e o Frentista]



Não sei se foi Mário Quintana ou o frentista do posto de gasolina que me disse que fumar é uma maneira sutil e disfarçada de suspirar.

Pergunto-me agora quantos suspiros teremos ainda pela frente, do que depender da política suicida em matéria ambiental que o atual desgoverno promove ou incentiva. Se a atmosfera se tornou sufocante e em breve tomaremos suco de agrotóxico, voltar a fumar não me pareceu uma ideia tão insensata.

Falando em fumar, quando a coisa fica cinza, costumo me refugiar em meu santuário, minha memória afetiva, a mesma que me fez rever “Smoke”, película dos anos noventa, cujo titulo, de forma sábia e poética, foi vertido como “Cortina de Fumaça” em terras brasileiras.

A modesta produção, dirigida por Wayne Wang e inspirada num conto de Natal do escritor Paul Auster ("Auggie Wren's Christmas Story"), oferece ao espectador um elixir de ética e poesia em tempos de decomposição de valores, sem contar pitorescas e nostálgicas cenas da época em que se acendia um belo de um cigarro ou charuto em recinto fechado sem maiores pudores (tal qual o ar irrespirável de Mad Men).

O enredo todo se desenvolve dentro e a partir da tabacaria de Auggie que, ao contrário do Esteves de Fernando Pessoa no poema "Tabacaria", é um homem cheio de metafísica, tendo como passatempo, por décadas, fotografar, diariamente e no mesmo horário, a esquina de sua loja no Brooklyn.

O que talvez possa ser o registro do mais do mesmo acaba capturando e revelando pelo acaso nuances do lugar e dos passantes, considerando que “nada é real exceto o acaso”, como diz o próprio Paul Auster na sua trilogia de Nova Iorque.

Aliás, “tabacaria”, tanto o lugar quanto o poema, parece necessariamente nos levar a processos introspectivos e decisivos em nossa vida, vide o escritor italiano Antonio Tabucchi que um dia, ao ler os versos de Pessoa achados ocasionalmente em um quiosque perto da Gare de Lyon, em Paris, sofreu uma espécie de epifania, descobrindo o real sentido de sua existência ou de sua busca interior.

O que há de mais doce e terno nos personagens do filme é uma espécie de postura pia diante dos conflitos e antagonismos, reconhecendo-se no sofrimento do outro uma extensão de seu próprio dilema.

Assim, Auggie perdoa a ex-mulher oportunista, a filha viciada em crack, o empregado relapso que, por sua vez, perdoa o pai ausente, ganhando o perdão do escritor que o acolhe e que também perdoa os traficantes que o agridem, finalmente tentando perdoar o destino pela morte precoce de sua mulher baleada em um assalto. Sei que não parece fazer muito sentido em tempos nos quais cristãos celebram a morte de criminosos e o “dar a outra face” tenha se tornado algo obsoleto.

Para perdoar é preciso compreender, para compreender o outro é preciso enxergá-lo, vê-lo diante de si. A racionalidade e a democracia modernas pressupõe o reconhecimento da alteridade. Na verdade perdoar está virando item de luxo pois está cada dia mais impossível o mínimo diálogo com quem nega fatos evidentes e verdades científicas, preferindo transformar tudo em mera questão de opinião (convicção).

O que estamos a experimentar é a total negação do outro, uma névoa obscura de intolerância tão densa quanto a vista em Londres, em dezembro de 1952, que quase colocou a cabeça do conservador Churchill a prêmio, mas que ainda não demonstra ser capaz de colocar minimamente em xeque os “atributos” de nossa versão arremedada e muito vagabunda de reacionário que nos preside.

Curiosamente, logo na primeira cena de “Smoke”, o escritor Paul Benjamin narra para outros clientes uma anedota de Sir Walter Raleigh, corsário, explorador e poeta que viveu na segunda metade do século XVI e início do século XVII, reconhecido como introdutor do tabaco no Império britânico. O aventureiro inclusive chegou a pisar por estas paragens, coletando produtos e narrando mitos acerca das terras amazônicas.

Desde que o corsário se tornara favorito da Rainha Elizabeth (Primeira), ou Queen Bessie como a chamava, fumar se tornou moda na Corte. Conhecido por sua astúcia reza a lenda que um dia apostou com a Monarca, agora sua parça, que seria capaz de medir o peso da fumaça. Para tanto colocou um cigarro novo sobre uma balança e o pesou, fazendo a operação novamente depois de tê-lo fumado, dessa vez colocando cuidadosamente a guimba e as cinzas e as pesando. A diferença entre as pesagens seria capaz de definir o peso da fumaça.

Em tempos nos quais relatórios da NASA, dados do INPE, opinião de especialistas e preocupação da comunidade internacional de nada adiantam para convencer o mais recalcitrante dos bolsominions, talvez lançando mão da mesma medida ou expediente, para cada árvore queimada, possamos mensurar o peso dessa fumaça e a dimensão do véu da ignorância que atualmente nos encobre.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Crônica da Melancolia [Victor Hugo e o Padeiro]



Não sei se foi Victor Hugo ou padeiro da minha rua que me disse que a melancolia é a felicidade de ser triste. O sol já saiu de câncer, mas esse certo estado de espírito não desalojou o corpo deste que vos escreve nem sob a ameaça de sessão de descarrego ou reza brava de benzadeira.

A melancolia é diferente de uma “bad” que não bate, espanca, é mais que uma “deprê”, ou como os mais antigos chamavam: “fossa”, a dita cuja pode ser atingida após uma tristeza prolongada em demasia, diluída no tempo, ou surge ainda quase que por inspiração, ao que Baudelaire chamava de “spleen”, o estado de “moleque pensativo” que, volta e meia, nos acerta em cheio. A sacana pode surgir em decorrência de um fato da vida, ou até mesmo provocada, reproduzida em laboratório.

Ainda nos idos do quinto século antes de Cristo, Hipócrates já classificara e vaticinara os perigos da bílis negra. Segundo o pai da medicina, a influência de Saturno leva o baço a secretar mais bílis negra, alterando o humor do sujeito (escurecendo-o), o que leva ao estado de melancolia.

Em algumas situações, a melancolia pode decorrer não de um típico sentimento individual pequeno burguês safado, mas de um estado coletivo capaz de ultrapassar gerações e afetar toda uma cultura. Além da clássica obra do alemão Albrecht Dürer, talvez a imagem mais recente que melhor exemplifique o fato seja a do singelo quadro “nighthawks” de Edward Hopper.

É noite e a rua está vazia fora do restaurante. No interior do estabelecimento um possível casal e um homem sentado sozinho (de costas para o espectador); nenhuma das três pessoas no balcão aparentemente conversa entre si, todos estão imersos nos seus próprios pensamentos. Por sua vez, o atendente parece estar buscando algo para além da janela, alheio aos clientes.

Se olharmos, com mais atenção, resta evidente que não há maneira de sair da zona do bar posto que as três paredes formam um triângulo que cria uma espécie de armadilha que encurrala os clientes. É também notável que o bar não tem porta visível para o exterior, o que ilustra a ideia de confinamento e aprisionamento.

Hopper teria começado a pintar a obra imediatamente após o ataque a Pearl Harbor, num domingo, dia tradicional da melancolia não sei se mais por culpa do cristianismo ou do capitalismo. O certo é que, após o evento, houve um sentimento generalizado de tristeza, um sentimento que é retratado na pintura, assim como o vazio e a solidão da vida moderna, tema comum em todo o trabalho do artista.

A minha primeira atração pelo quadro se deu pelo título, "falcão ou gavião da noite", alcunha usada para descrever alguém que fica acordado até tarde. Um anúncio para os cigarros "Phillies" é destaque em cima do restaurante, a primeira marca de charutos que comecei a fumar ainda na adolescência.

A cena foi supostamente inspirada por um restaurante (já demolido), em Greenwich Village, lar de Hopper no bairro de Manhattan. O lote agora vago é geralmente associado com o local que é conhecido como ex-Mulry Square, no cruzamento da Seventh Avenue South, Greenwich Avenue e West 11th Street. No entanto, segundo o The New York Times, esse não pode ser o local que inspirou a pintura, porque um posto de gasolina esteve a ocupar o lote entre os anos trinta e setenta do século passado. Há alguns anos em uma rápida passagem pela Big Apple procurei o local, em vão.

Hopper foi um espectador ávido de cinema, e os críticos notaram a semelhança das suas pinturas com cenas de filmes. Várias das suas pinturas sugerem filmes de gângsteres dos anos trinta, tal como a primeira versão de “Scarface”.

O pintor não só foi influenciado, mas influenciou o cinema. Win Wenders recria “Nighthawks” como o cenário de um filme-dentro-um-filme em “The end of Violence”, não esquecendo ainda todo cinema noir e neonoir (seja lá o que isso signifique), basta o exemplo do clássico “Blade Runner”. Em uma entrevista, o diretor Ridley Scott afirmou que andava sempre com uma cópia da pintura debaixo do nariz da equipe de produção para ilustrar o aspecto e a sensação que procurava para o filme.

Esse tal sentimento coletivo ou generalizado parece com o que estamos a experimentar em terras brasileiras, ao menos em minha bolha social que, em termos buarquianos, chamo de “minha gente”.

Tudo começou naquele fatídico agosto, de dois anos atrás, quando um desgostoso golpe travestido de impeachment se cumpriu diante de nossos olhos absortos, sendo que ainda fomos obrigados a ver um facínora elogiador de torturadores e ditaduras chegar ao poder, ironicamente, através da democracia que ele tanto avilta.

Desde então, a rotina matinal do brasileiro lúcido consiste em tomar café e contrariado acompanhar a mais nova barbárie ou asneira promovida pelo atual desgoverno, seja pelo jornal ou pela corrente de whatsapp difundida pelo tio reaça. Até então, só o futebol nos permitira tal cumplicidade nacional, nas duas copas que sediamos, assim vamos demonstrando com o tempo que somos cordiais até com a nossa própria desgraça.

De toda a sorte, a melancolia não é necessariamente ruim, em algumas circunstâncias até se torna necessária para que reconheçamos certos aspectos da vida. Ela nos permite viver num estado de clareza de consciência, o equilíbrio que há no meio do caminho entre o coach e o emo, além de em muitos casos promover um estado criativo, potencializar certas habilidades, afinal, “sem um bocado de tristeza não se faz um samba não” e com a tinta por ela produzida que Brás Cubas redigiu suas memórias póstumas.

Admito que para um canceriano, com lua em câncer, não é muito difícil atingir tal condição: basta ler “tabacaria”, do Pessoa, divinamente (mas sem metafísica) recitado pelo saudoso Antônio Abujamra, ouvir “don’t think twice it’s all right” do Dylan, ou qualquer canção sombria do Tom Waits (que no disco “nighthawks at the diner” se inspira na pintura de Hopper), ver um daqueles episódios tristes de Chaves, uma derrota do Corinthians (não tem sido frequente), um desengano da morena, ou simplesmente uma persistente chuva, típica da Amazônia, ou se pá tudo junto, para reproduzirmos mentalmente o memorável monólogo do recém falecido Rutger Rauer, interpretando o replicante de Blade Runner: “ll those moments will be lost in time, like tears in rain”.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Mundo Invertido



É para o mundo invertido que vai a tampa de caneta
O isqueiro emprestado
A conta pendurada
A guimba, a bia
A tua calcinha retirada e perdida no vão do sofá

É para o mundo invertido que vai o sol no arpoador
Depois de solenemente aplaudido
A linha zero dez quando a rota finda
Os amores não vividos
Os beijos esquivados
Todos os "e se" que não permitimos acontecer

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Das vantagens e desvantagens para namorar




É vantajoso ter decorado um ou outro verso de Vinícius
Ter a receita adaptada para se viver um grande amor
É desvantagem essa pieguice manifesta em atavismo
E ser tão cafona como quem fecha a rima em dor

É vantajoso saber cozinhar algo e ser bom de prato
Companheiro de cama e mesa
É desvantagem esgotar as possibilidades do camarão
Exaurir as inúmeras variações do espaguete
Abusar do carboidrato e da cerveja
Criar um pouco de barriga e descuidar da pressão

É vantajoso ter apreço pelas gordurinhas
Fazer pouco caso de estrias
Ver charme na anca e suas alcinhas
Entender que a beleza dos corpos
Está na singularidade de cada imperfeição
É desvantagem abdicar do peito de remador
Ver ao largo o vigor juvenil
Ressentir-se da firmeza irretocável
Dos devotados atletas em flor

É vantajoso saber que cada um cumpre a sua sina
Fingir que gosta de friends
Compartilhar a senha do wifi e netfix
Apontar com segurança
O clitóris na cartografia feminina
É desvantagem essa dose de egoísmo
Trazer consigo as incertezas do mundo
A incapacidade de prestar fidúcia
Solidão de filho único
Tendência ao escapismo

É vantajoso estar cônscio do fim certo
Predispor-se a impor intensidade ao momento
Desfrutar a embriaguez do efêmero
Diuturnamente buscar
A eternidade que está no gesto

É desvantagem certo gosto amargo
Como de uma ressaca prolongada
Sede frustrante que não sacia
O desgosto do muito que ficou por pouco
Saber que tudo vira inevitável nostalgia.

O que eles querem

Dylan se desequilibrando da moto
Morrison inerte em sua banheira
Nietzsche em prantos abraçado ao cavalo
Os miolos de Hemingway numa remota fazenda
Barbosa cai um segundo atrasado na bola
Virginia mergulha com pedras no leito de um rio
Vestígios de sangue e de pó
Na fronha de um velho amigo morto
Uma linda garota com a maquiagem borrada
Despeja os excessos da noite
Debruçada na latrina do bar do Cabelo
Um santo deserta ao amanhecer
Um vira-lata uiva de fome
Belchior fecha a conta do hotel
Raul espera na poltrona
A cerveja que esquenta na mão de Hank
Lorca morto na mão de um fascista
Zé Ramalho indo a nocaute outra vez
Vim para tão longe
Trazendo minhas memórias comigo
As levo a passear
As distraio
Compro algodão doce e balão
Espantam-se com o rugir do oceano em Cascais
Flanam em Greenwich Village
Morrem de tédio no Tortoni em Buenos Aires
Deixam-se seduzir por um pederasta em Paris
Quando enfim as ofereço a última dose
E peço a da casa no boteco de Seu Auri
Elas me sussurram o mesmo
O de sempre:
“Você consegue fugir de tudo
menos de si”.
(Homenagem ao “que eles querem” de Bukowski)

A mais bela das árvores



Há nas costas de uma bela garota a mais bela das árvores grafada,
A imponente copa emergindo do tronco não produz sombra,
Tampouco de lá se apresentam razões frutíferas,
Mas ao pesquisador atento é ofertado o singelo serpenteio de passos hesitantes,
O florescimento de augustos sorrisos,
Delicadamente acoplados em umbrais vicejantes;

Há nas costas de uma bela garota a mais bela das árvores grafada,
Impassível de catalogação,
Recusou para si nome científico,
E não atende pelo nome popular,
Embora na densa flora das multidões se eleva,
Embebido em orvalho transpirado,
O mais sedutor e embriagante tom de canela;

Há nas costas de uma bela garota a mais bela das árvores grafada,
Inacessível ao suplício de Serras,
Indiferente aos anseios de Machados,
Recolhe-se para tombar em inauditos lençóis,
Soerguendo-se seja na aurora das manhãs,
Ou no poente, a desdita de todos os sóis;

Há nas costas de uma bela garota a mais bela das árvores grafada,
Exultantes meus olhos margeiam,
A única árvore sem outono,
Sobrevivente das estações femininas,
Habitante de um latifúndio sem dono.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

A depressão do amor


Deu no rádio em cadeia nacional,
O novo velho governo tirou o amor de circulação,
Como medida da mais asséptica austeridade...
Explica o Ministro empertigado,
Em polvorosa,
A gente desprevenida pôs-se a revirar os bolsos,
Arreganhar gavetas e levantar colchões...

Sob o espanto de seus maridos,
Recatadas esposas revelam paixões,
Reavivam desejos ocultos e taras incontidas,
Até o padre tinha lá das suas reservas,
Casais de enamorados contabilizam suas economias,
E o mais rechaçado dos feios se encontrou afortunado.

Não tardou para que a fila em torno do banco,
Completando inúmeras voltas,
Apinha-se desesperados com cartas e bilhetes em punho...

E eu que tão pródigo de quereres fui,
Me guardei até o derradeiro instante,
Perdi o tempo hábil do desvalido escambo,
E me deparei com papeis inúteis.

De que serve o amor quando já impassível de oferta?
Há quem interessa tais demandas?
Deitei-o em uma arca com notas de cruzeiros,
Embrulhei pão e peixe,
Forrei meus calçados rotos,
O que ainda sobrou guardo inconfesso,
Na espera de que um dia,
Um mísero dia,
Se torne item de colecionador.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Receita para ser um herói



Para ser um herói
Um super-herói
É preciso mais que músculos
Mais que uma cueca por cima
Das calças
É forçoso ter espírito
Indomável e imberbe
Na defesa
De todas as causas
Que interessem ao bom público
E a indústria petroleira

Para ser um herói
Um super-herói
É necessário ter uma mocinha
De lábios carnudos
E sorriso faceiro
De vez em quando permitir ser heroína
Emprestar o escudo
Compartilhar suas certezas
Guardar foto dela
Recortes de gibi
Dentro de sua algibeira

Para ser um herói
Um super-herói
Recomenda-se ter inimigos
Muitos
Da mais inconteste vileza
Aos quais não se deve permitir
O mínimo gesto de bondade
Dubiedade
Ou fraqueza
Não é fácil levar democracia ao mundo
E ilusões até as aldeias

As travessuras da menina má [Dom Casmurro e o Leiteiro]


Não sei se foi Dom Casmurro ou o leiteiro que me atentou para o risco que todo homem enciumado experimenta: contaminar de uma astúcia, até então inexistente, a mulher alvo de sua desconfiança.

Ou seja, o corno por antecipação, em sua ânsia, acaba por esquentar o leito de sua própria desventura, ainda que bem advirta Caetano sobre a desnecessidade de se falar da malícia de toda mulher.

Me cai tardiamente em mãos um Vargas Llosa, já oitentão, passando em revista as agruras de Ricardo e seu amor bandido pela chilenita, ou Lily, ou Arlette, ou madame Arnoux, ou Mrs. Richardson, ou Kuriko, ou apenas a menina má em suas inúmeras metamorfoses e travessuras, desde as lembranças idílicas de uma infância nos anos cinquenta em Miraflores, bairro nobre de Lima, passando pela Paris revolucionária dos anos sessenta, a efervescente Londres hippie dos anos setenta, a exótica Tóquio com seus mafiosos impiedosos e a Madrid em transição política e social nos anos oitenta.

Ao longo da vida, Ricardo é constantemente revisitado por essa mulher de mil faces que toma de assalto a inércia de sua vida desprovida de maiores ambições e aventuras, sempre deixando-o ao final desolado e a ver navios, mudando-se apenas o cenário e tempo de cada desdita.

O tema da perfidez feminina é mais velho que o mundo e a posição de sentar (do gênesis aos boleros de açougueiro), mas em Llosa a infidelidade da mulher ganha outra nuance, bem distante da sisudez machadiana.

O curioso é que aos poucos, em cada golpe e deslealdade, mais vamos nos identificando com a sordidez de Lily, seu pragmatismo que se recusa a amar e demonstrar sentimentos, mas que se deleita, ainda que faça pouco caso, das breguices e da paixão obsessiva de Ricardo.

A verdade é que nenhuma das vilezas da menina má se comparam com as humilhações que experimenta ao longo da vida pelo preço que paga por ser livre, desde a pecha de uma infância miserável convivendo com a arrogância e preconceitos burgueses, até a violência sexual que se submete petrificada num mundo construído pelos homens e para os homens, onde a cobiça, seja pelo poder ou lascívia, a tudo domina e devora.

Interessante é que as travessuras da menina má foram publicadas pouco depois das memórias das putas tristes de Garcia Márquez, outro quase oitentão na época, ambas as obras seriam o canto do cisne de seus respectivos autores se não fosse a longevidade intelectual e produtiva de Llosa que lhe rendeu frutos posteriores.

Aqui a cisão dos dois maiores escritores hispano-americanos (ao lado de Borges) vai além da notória diferença política (Llosa coxinha – Márquez mortadela), a forma como as mulheres são retratadas chegam a ser antagônicas: se no colombiano a figura feminina é insondável em seus silêncios, idealizada sempre enquanto alvo passivo e necessário da pulsão masculina, no peruano ela é voluntariosa, confunde no que diz e é intraduzível no querer e nas birras que movimentam a vida, indiretamente, afetando o destino de todos.

Na peleja do homem bobo devotado e da mulher dissimulada há algo muito belo e humano que volta e meia nos escapa. O que poucos homens estão dispostos a compreender é que a rebelião feminina, que se recusa a adequar-se aos padrões de afeto e moralidade, a mulher que salta do pedestal onde séculos, da religião ao romantismo, a encastelaram num tedioso papel de musa ou figura sacra, também liberta o homem e seus paradigmas aprisionantes e aprisionadores, nos retira da modorra e do tédio do papai-mamãe, nos tira do lugar comum, do tédio de um arquétipo engessado de casal e relacionamento.

É preciso uma vida inteira para que Ricardo entenda o seu amor e sua amada, não se sabe ao final se o seu êxito decorre de sua paixão fervorosa ou apenas de sua condição resoluta, pois sabe que se sofre com ela, pior fica em sua ausência.

Assim a conquista, meio sem querer, a atinge sem bússola ou fórmula, vence por pontos quando compreende que o charme e beleza de sua amada estão justamente em seus caprichos, como o mar, uma fêmea traiçoeira, dessas que dizem “sim, mas não”, “não, mas sim”, como vaticina o velho esfarrapado que conversava com o Pacífico, sempre consultado pelos engenheiros peruanos antes da construção de qualquer quebra-mar, já que suas previsões inexplicáveis eram muito mais acertadas do que qualquer outra que empregasse toda a lógica ou matemática existente.

Bem-aventurado o que teve uma bandida em sua vida, como a Rosa de Chico, que sai pra comprar cigarro e some, que troca o nosso nome, que arrasa o nosso projeto de vida e que nos perdoa por nos trair. Bom mesmo é ser homem de malandra.

terça-feira, 30 de abril de 2019

Tributo ao Belchior [O bardo e o entregador de gás]


Não sei se foi Belchior ou o homem do gás que me disse que viver é melhor que sonhar, mas em tempos difíceis sem um sonho (também sem uma cachaça) ninguém segura esse rojão. Em dois mil e dois o Brasil era outro e este que vos escreve, evidentemente, também (se Heráclito tiver razão do último banho pra cá já não sou mais o mesmo). Naquele ano o escrete canarinho seria campeão do mundo de futebol pela quinta vez e um torneiro mecânico, vindo do movimento sindical, seria eleito Presidente da República, sob a desconfiança do mercado e euforia do povo.

Contando treze pra quatorze anos, minha vida se resumia na rotina idílica de estudante ginasiano no colégio franciscano em Juazeiro do Norte, Ceará. Aula, bola, bicicleta, missa e gibi. Por aquele tempo eu e meu amigo e colega de sala Mikkael Duarte, hoje renomado psiquiatra cearense (enquanto eu renomado doido), adquirimos o hábito de visitar a Nobel, então única grande livraria na região. Sem um puto no bolso e vontade de desvendar aquele mundo de autores e ideias que se descortinava diante da curiosidade juvenil o jeito era dissimuladamente folhear obras como quem tem dúvidas sobre o que comprar, ler páginas sob o olhar desconfiado dos funcionários e guardar os exemplares de volta para a prateleira no aguardo de nova investida furtiva (ainda não tinha coragem de furtar livros). Foi em nossa homenagem que apregoaram uma placa com os dizeres “proibido ler obras na íntegra e tomar anotações”. Só faltou o “isso aqui não é biblioteca”. Não preciso dizer que nosso meio de leitura era lento e parcimonioso, como quem come de bico os grãos, talvez por isso hoje o meu trauma em não poupar gastos com livros e ler sempre de uma sentada qualquer obra, por mais volumosa que seja.

Numa tarde de dia de feira, sem pouco público, um movimento anormal e repentino se fez com a chegada de uma imponente figura que até então eu só conhecia das capas de discos e cds, Belchior e sua voz trovejante, sua presença de um magnetismo que poucas vezes percebi em alguém, estava diante de nós para uma sessão de autógrafos. Pegos de surpresa, sem tempo de voltar em casa e apanhar algo autografável, sem dinheiro como sempre pra qualquer coisa, pagamos centavos por uma folha de papel sulfite e nos pusemos como primeiros da fila que logo se formava.
Ainda não era o Belchior desaparecido, muito menos procurado, embora já então alguns vestígios de sua contínua deserção já se notavam. O último álbum autoral “baihuno” já completava quase dez anos, “vício elegante”, em que interpreta em sua maior parte outros compositores, seis anos. Seus maiores interesses eram então a pintura e a poesia, a música e o show business estavam de escanteio há muito. Antes de chegar minha vez fiquei absorto não apenas na figura, mas na beleza e elegância do seu traço empunhando uma nanquim dourada. Eu então desenhava e aquela era a caneta dos sonhos de qualquer artista liso. O encontro foi rápido, sorriu talvez surpreso por um fã tão novo na fila, perguntou pelo meu nome e riu do “Juan com J”, riu mais ainda quando comentei sobre a caneta e disse que só não me dava pois não teria com o que autografar. A verdade é que Belchior era até então uma voz, entre tantas outras, que embalavam nosso gosto musical ainda em formação. Confesso que sua retórica sarcástica e seca então não fazia minha cabeça como um Chico, um Gil, ou um Caetano. Foram precisos muitos porres, desilusões políticas, existenciais e amorosas, para que aquele canto torto feito faca cortasse minha carne em todo seu sentido, até que eu entendesse a minha “solidão, o meu som e a minha fúria e essa pressa de viver”.

Belchior marcou não só a mim, mas o que posso chamar de minha geração, ou simplesmente a quem carinhosamente chame de “os meus”. “Sujeito de Sorte” foi a trilha sonora de minha viagem para Machu Picchu. Chorei nas margens do Sena em Paris cantarolando “tudo outra vez”, “minha fala nordestina quero esquecer o francês”. Recentemente revi vídeos de reuniões com amigos, ainda adolescentes, ao som de um violão cortando “a palo seco”. Belchior era tão próximo que nunca nos fez caso o estardalhaço de seu desaparecimento. Inconscientemente segui os seus passos errantes pelos lados do sul, atravessando a fronteira dos pampas “onde um tango argentino me vai bem melhor que um blues”. Belchior foi, é e sempre será um ponto de fuga onde convergem as paralelas de nossas existências.

Foi num trinta de abril como esses, há dois anos, acordando no sítio do meu sócio e amigo Érico Gonçalo, depois de um porre homérico tomado com meu também amigo e colega Breno Messias Leite (outro fã incondicional do bigodudo) que ainda grogue liguei a televisão pela primeira vez depois de dias e dei de cara com a manchete inevitável, a que anuncia a única certeza derradeira. Incrédulo fiquei diante da tela, enquanto Breno expurgava os excessos da noite anterior no banheiro ao lado, até este me apareceu ao lado e só me foi possível murmurar: “Belchior morreu”. O ogro ainda limpando o vômito nas mangas somente pode exclamar um “puta que o pariu”.

O celular não pegava nas bandas bucólicas em que nos achávamos e somente na volta pra cidade, ao primeiro sinal, fui acompanhando as chuvas de mensagens e avisos de ligação perdida. Como se eu tivesse perdido um ente muito próximo e não estivesse dando sinal de vida preocupei muita gente que acreditou que eu aproveitara o bonde. Demorou a ficha a cair, “se sob o sol nada mais velho e vil que a morte, quem viu, na vida, novidade em estar vivo?”. Foi só quando velhos amigos que foram ao velório em Fortaleza e gravaram um coral de crianças cantando “comentários a respeito de John” que as lágrimas cancerianas jorraram sangrando como açude ou barragem próspera. Meses antes, em Manaus, conseguimos realizar uma homenagem ao bardo no bar do Cabelo, minha embaixada, meu ponto de exílio, onde em várias madrugadas o dono homônimo coloca o Bel pra tocar aos poucos bêbados e boêmios como prêmio aos sobreviventes.

Ainda será preciso uma ruma de gerações até que situem Belchior no seu devido lugar na história da música e da poesia, o que ele nunca parece ter feito questão, mas justiça deve ser feita num país sem memória como o nosso, onde, em tempos de democracia, elegemos nostálgicos de ditaduras, o que faz suas letras mais do que atuais. Embora eles tenham vencido “e o sinal está fechado pra nós que somos jovens”, “não cantem vitória muito cedo não”, “sempre desobedecer, nunca reverenciar” deve ser o mote em tempos de lambe-botas de milico e fascismo escancarado. Não é preciso que nos digam “de que lado nasce o sol, porque bate lá nosso coração”. Enquanto isso, “até mais ver meu camarada”.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Veleidades





Desarmou meu couraçado
Grudou minha língua ao palato
Incendiou-me as pálpebras
Empenhou meu sono
Distribuiu meus discos na feira
Atirou meus livros da sacada
Preparou meu galo de estima
Com quiabo
Guisado
Fez troça do meu pau
Profanou meu rito
Publicou meu diário
Babujou meu almoço
Sustou meu cheque
Afundou minha nau
Ensurdeceu ante minhas súplicas
Me ensinou todos os tons
E todas as nuances
Do mais solene e indiferente não
Cortou minhas ceroulas
Deu-me como morto ao jornal
Comemorou abraçada ao inimigo
Rasgou minhas cortinas
Sumiu ao primeiro raiar da manhã
Torou em fúria os cabelos
Sujou meu crediário
Dedurou-me ao fisco
Beijou o escudo rival
Quando enfim fatigado
Rendido
Extenuado
Perguntei-lhe a causa
Motivo
Circunstância
Ou razão
Fez o bico que me encanta
Torceu os lábios
Acentuou as doces covinhas
E murmurou:
Não sei ao certo
Raiva, desgosto ou
Capricho
Vai que é só o meu jeito
Discreto
De te chamar atenção

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Receita para que os Homens Melhorem [Wood Allen e o Confeiteiro]


Não sei se foi Wood Allen, ou meu confeiteiro, que uma vez me alertou do contraste entre a mulher e o homem nus, a primeira é uma deusa, uma obra de graça e inspiração da natureza, o segundo não passa de um pêndulo desajustado. O abismo não para por aí, vários relatos de amiga(o)s reconhecem que gostar de homem não é escolha, se fosse estaríamos fodidos, ou desprovidos de foda qualquer.
O homem não passa de um mal necessário para a perpetuação da espécie. Precisaremos boicotar qualquer pesquisa que crie uma forma de reprodução que não nos envolva se pretendermos nos manter por aqui sob uma justificativa lógica antes que descubram nossa insólita e evidente inutilidade, não sendo o bastante ainda abusamos de nossa prescindibilidade.

A lei de falências estabelece que o empresário falido e não reabilitado fica proibido de exercer a atividade empresarial enquanto não for dada por cumprida toda uma série de obrigações pendentes. E se nos relacionamentos fosse assim? Se aos homens fosse dado ou permitido se enamorar novamente ou ensaiar o cortejo de um novo amor somente mediante a prova de quitação das pendências anteriores? Talvez isso nos ajudasse a melhorar.
Nem me refiro ao cumprimento das grandes promessas e juras, a utopia da fidelidade e do amor eterno não alcançadas [deletar esse trecho na revisão final pra não ter encrenca com a patroa], em verdade, não são a causa essencial da bancarrota e do declínio das relações.

O amor se estrepa nas pequenas coisas, como diria Drummond, sendo minado e corroído nas pequenas frustrações e desenganos, nas mais miúdas coisas que somos relapsos, e friso, somos todos relapsos, inclusive a mim, pois dos meus conhecidos só vejo campeões em tudo, sensíveis desconstruídos ou touros reprodutores incompreendidos, todos nós incapazes de reconhecer uma falta sequer. E teria maior prova de amor para a nova amada que acordar pela manhã e em nome dela dar a cumprir como os doze trabalhos de Hércules as pequenas promessas não cumpridas para os ex-amores?

Levar Tereza ao cinema (sim Tereza não foi levada ao cinema por inúmeras procrastinações), ensinar Bruna a andar de bicicleta e Pietra a nadar, cozinhar o tal do fillet mignon com batadas souté para Ana, conhecer os pais de Marisa, passar um final de semana em Paraty com Sofia, prestar atenção quando Clara arrependida fala da blusinha que bateu os olhos e não comprou, vasculhar o guarda-roupa e descobrir o seu tamanho, comprar a famigerada blusinha, ir ao show do Djavan com Solange, não fazer Luísa esperar, comprar o que realmente Rebeca queria ganhar de aniversário, descobrir a música favorita de Estela, ver “sempre ao seu lado” com Bianca, ouvir mais Amanda.

Talvez, mas só talvez depois disso, poderíamos voltar a nos indagar, sem cinismo, a clássica questão que aflige nossa raça desde nossos ancestrais: afinal, o que querem as mulheres?

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Crônica dos ventos do norte (Ou de Sêneca e o barbeiro)



Não sei se foi Sêneca ou o meu barbeiro que disse que não há vento favorável para quem não sabe ao certo aonde deseja ir. O certo é que há uma curiosa e obscura relação entre as paixões e os ditos ventos do norte, estes ventos que não conhecem meio termo. Somem por dias a fio em terras amazônidas, não oferecendo a menor brisa ao angustiado transeunte, ou aparecem em revoadas de destelhar casas e levantar saias de moças.

Bóreas, que significa vento do norte, ou devorador, era na mitologia grega o deus do vento frio do Norte que trazia o inverno. Bóreas é geralmente descrito como um idoso alado muito forte e dotado de um violento caráter. Os gregos achavam que seu lar estava em Trácia e descrevem uma terra ao norte chamada Hiperbórea que significa "para além de Bóreas". Nessa terra, as pessoas viviam em completa felicidade até a mais longeva das idades. Um dia, Bóreas se apaixonou por Orítia, uma princesa ateniense. Apesar de tentar conquistá-la, a princesa fez pouco caso. Bóreas a raptou enquanto ela dançava nas margens do rio e levou-a numa nuvem de vento até sua morada. Impressionante como os deuses gregos são temperamentais e simplesmente não sabem ouvir um sonoro “não”. A reconciliação entre os cidadãos atenienses e o Deus veio quando, ameaçados pelos persas, clamaram por Bóreas que lançou ventos fortes fazendo afundar os barcos persas, sendo construído um altar em sua veneração junto ao Rio Iliso. Dos persas náufragos nada sabemos.

Em “Sangue Latino”, Secos e Molhados dizem que “os ventos do norte não movem moinhos”, o que o demonstra a impossibilidade do emprego da energia eólica, embora digam que é possível estocar ventos. Djavan fez uma canção intitulada “ventos do norte”, na qual diz “bem-vinda não sei de onde, não sei como apareceu, se foi dos ventos do norte, ou da maré que cresceu”. Dércio Marques, por sua vez, também tem sua “ventos do norte”, rica melodia e letra: “ventos do norte que trazem pra sorte a luz da manhã”. Ou seja, os ventos do norte trazem sorte e a pessoa amada em até três dias com frete grátis (exceto região Norte e Nordeste).

Kath Bloom em “come here”, a canção que toca em “Before Sunrise”, diz que “there's a wind that blows in from the north and it says that loving takes its course”. O amor é uma linha de ônibus ou trem, basta saber achar a rota certa, mas vai pelo vento do norte. Já Bob Dylan, cantando sua “girl from the north country” diz ao desavisado que “if you're traveling to the north country fair, where the winds hit heavy on the borderline, remember me too ne who lives there, for she once was a true love of mine”. Se tiver por tais bandas, já sabe.
E você, que bons ventos te trazem por aqui?

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Crônica do Reino de Redonda



Não sei se foi Voltaire ou o bicheiro de minha rua que disse que o melhor governo é o qual há o menor número de homens inúteis, caso seja possível a inexistência de homens, melhor ainda. Em tempos de culto ao que havia caído em desuso (vitrolas, fitas K7, suspensórios, monarquia), considerando ainda o marasmo da modernidade desprovida de terras nullius a se conquistar, o caso do Reino de Redonda demonstra que de há muito, autoproclamações fictícias, como a de José de Abreu no Brasil e Juan Guaidó na Venezuela, são levadas em bastante consideração.

Para quem não está a par do assunto, o Reino de Redonda é uma nação fictícia (como qualquer outra) criada em face da ilha de Redonda, uma das tantas porções de terra desabitadas no mar do Caribe reivindicadas por Antígua e Barbuda. Com seu território não chegando a três quilômetros quadrados, o local carece de palmeiras e até de praias, sendo apenas um penhasco habitado por lagartos e talvez por alguma cabra. A região foi descoberta por Colombo, em sua segunda viagem para a América, não se dignando o conquistador sequer a desembarcar na ilha, apenas a nomeando Nossa Senhora da Redonda.

A origem do reino seria proveniente do escritor de ficção científica M.P. Shiel que teria propagado a anedota de que seu pai, Mattew Dowdy Shiell, um banqueiro de Montserrat, comprara a ilha em 1865, por ocasião do nascimento de seu rebento, tendo rogado da Rainha Vitória a sua proclamação como rei do local, o que foi concedido pela generosa majestade (Thank you, Queen, como diria Bolsonaro), sob a condição de que não houvesse nenhuma prática política contrária aos interesses coloniais britânicos. Assim, M.P. Shiel, agora Filipe I de Redonda, assumiu o trono em uma cerimônia naval presidida pelo Bispo de Antígua.

O maior legado de Shiel (Filipe I) foi a engenhosa ideia de criar uma aristocracia literária, concedendo diversos títulos nobiliárquicos para escritores como H. G. Wells, Dylan Thomas e Henry Miller, efetivando assim algo próximo do ideal platônico concebido na obra “A República”, mas em uma monarquia. Seu reinado foi longo e pacífico, de 1865 até 1947, quando abdicou da coroa em favor de um pupilo seu, o também escritor, John Gawsworth.

Algo de podre no reino de Redonda passou a se sentir após a coroação de Gawsworth, agora João I, que dado a uma vida boêmia e repleta de farras, em diversas ocasiões de pindaíba, empenhou o título e a coroa fictícia provocando uma larga polêmica sobre a linha sucessória do reino. O consenso mais amplo aponta John Wynne Tyson (também escritor), ou João II, como o verdadeiro sucessor de Gawsworth. Tyson reinou até os anos noventa do século passado quando, cansado dos problemas inerentes ao cargo, abdicou da coroa em favor do escritor espanhol Javier Marias, após a leitura da obra “Todas as Almas”.

Paralelo ao que narra a historiografia oficial, Max Legget sustenta ser o verdadeiro monarca pois, durante uma temporada em Toronto na casa de seus pais, Gawsworth (João I) teria supostamente prometido aos anfitriões a coroa caso tivessem um filho varão. Por sua vez, William Leonard Gates, autoproclamado Rei Leo, alega ser o legítimo herdeiro do trono, porquanto John Wynne Tyson (João II) fora apontado apenas como executor literário de Gawsworth e que este teria, em verdade, nomeado Arthur John Roberts (o verdadeiro João II) como rei, o qual viria a nomear Gates como seu sucessor. Como prova de sua tese, Gates afirma estar de posse do Arquivo Real de Redonda, que indica oficialmente suas credenciais como regente, embora sempre tenha se negado a apresentá-las publicamente. Correndo por fora, ainda temos Robert Williamson, autonomeado Rei Roberto, o Calvo, nomeado por Wynne Tyson que, em um chá da tarde, ao confidenciar-lhe o interesse em abdicar em favor de Javier Marias, foi dissuadido do intento considerando a indigna ação de outorgar um trono vinculado ao Império Britânico em favor de um espanhol depois de tanto esforço dos ingleses em expulsá-los do Caribe.



Indiferente às intrigas de seus opositores e embora seja republicano, Javier Marias ou Xavier I, um dos mais cotados ao prêmio nobel de literatura em 2018 (se não fosse o prêmio ter sido suspenso após os escândalos sexuais nos bastidores da Academia Sueca), valendo-se da tradição literária de seu reino, passou a conceder títulos nobiliárquicos para escritores e artistas tais como Pedro Almodóvar (agora Duque de Trêmula), Pierre Bourdieu (Duque Desenraizado), Francis Ford Coppola (Duque de Megápolis), Umberto Eco (Duque da Ilha do dia Anterior). Vida longa ao rei, esperemos apenas que não se descubra qualquer potencial petrolífero na região sob risco dos Estados Unidos se inclinarem a levar democracia e liberdade ao lugar.



quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Crônica das Ruas (Borges e o Engraxate)


Não sei se foi Jorge Luis Borges ou um engraxate que me disse: “as ruas de minha cidade já são minhas entranhas”. Por costume interiorano, criado antes das facilidades tecnológicas, ou por minha alma de velho mesmo, adoro identificar ruas e memorizar seus respectivos nomes. Nasci na Rua Borba, mas logo fui levado para a Rua J. Carlos Antony; só em Manaus vivi ainda na Belo Horizonte, na Parintins, na Leonardo Malcher, na Constantino Nery, na Maneca Marques que também já tinha sido Grande Otelo e, bem antes, Perimetral. Vivi ainda na Rua Vitória em Fortaleza, na 22 de julho em Juazeiro do Norte, na Monsenhor Esmeraldo no Crato, na Alameda Jaú em São Paulo. Bem sei que é um costume que caiu em desuso, em tempos de GPS, nem os taxistas parecem ter o interesse em memorizar nomes de ruas e com isso ignoramos também um pouco de nossa história.

Que me perdoem San José na Costa Rica, where the streets have no name, bem como Brasília com suas siglas e números frios. Quando passei uma temporada em nossa capital federal fui obrigado a andar com uma espécie de código cifrado no bolso que entregava ao condutor na vã esperança de que me deixasse em minha morada provisória. Quanto desgosto! Me aferrava ao papel no temor infantil de perdê-lo e com ele qualquer chance de um dia encontrar minha própria casa.

Ruas precisam de nome, não precisa ser nome de gente importante, que se faça tal qual o pai de um amigo que, como servidor público, batizou uma rua não catalogada no Crato com o seu próprio nome para fins de registro administrativo. O nome fornece identidade, humaniza o impessoal, aproxima o improvável historicamente. O que José Clemente e Lobo D’Almada conversam na calada da noite na esquina em que se encontram? O que Saldanha Marinho tem a dizer ao Joaquim Sarmento?

Toda cidade que se presa no Brasil precisa de uma Getúlio Vargas, de uma Santos Dumont, Duque de Caxias, Dom Pedro (o I e o II), embora considere que precisemos bem mais de Avenidas Anita Garibaldi, Antonio Conselheiro, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Euclides da Cunha. Eu tenho um bairro todo projetado em minha mente, só falta quem o execute: que delicioso seria a Milton Nascimento encontrando a Mário Quintana ou a Chico Buarque desembocar na Alameda Lô Borges. Cruzando todas as vias teríamos o Boulevard de Los Suenos Rotos (ou Avenida Joaquin Sabina) seguindo em paralelo com a Positively 4th Street.

Antes de viajar para alguma cidade ainda desconhecida trato de conhecer o mapa da região principal e memorizar o nome das ruas. Graças ao costume, andei por Havana e sua Ciudad Vieja como um velho visitante e sei quantas ruas cortam a Calle Obispo, entre elas a Calle Cuba onde me hospedei, assim como sei quantas ruas cortam a São Benedito em Juazeiro do Norte, cidade mais católica impossível tendo como ruas principais São Pedro e Paulo e quando esgotado todo o rol sagrado tascaram uma Rua Todos os Santos. O sincretismo é inevitável já que toda rua tem suas encruzilhadas.

Com o tempo temos nossas ruas prediletas, por razões e memórias afetivas em regra geral, outras por paixão gratuita só pela beleza do lugar. Como eu amo a Monsenhor Coutinho, a Carmen Miranda e a Rua dos Barés em Manaus, a Calle Soriano (a mais bela no outono em Montevidéu), a Serrano em Buenos Aires, o Paseo del Prado em Havana, a Apeninos e a Consolação em São Paulo, a Dom Pedro em Juazeiro do Norte, a Rua da Saudade no Crato, a rua da Estrela e a Afonso Penna em São Luis, a Dom Pedrito em Porto Alegre, a Divinópolis e a Paraisópolis em Belo Horizonte, a Rue D’Orsay em Paris, a lista é extensa. Minha paixão por ruas é tamanha que fiz uma amiga em visita à Cidade do México encontrar e conhecer a famigerada Calle Bucareli tão narrada pelo escritor Roberto Bolano.

Ainda existem muitas ruas que compõem meu imaginário afetivo e poético que pretendo conhecer ou revisitar. Não alimento nenhuma expectativa do gênero, tampouco pretensão, mas se quisessem me homenagear de bom grado, ainda que postumamente, que batizassem uma rua com meu nome. Não exijo nenhuma avenida principal ou boulevard florido, bastava uma simples travessa. Já até imagino um transeunte perdido recebendo a resposta esclarecedora: "Você pega a Juan Pablo Gomes direto e dobra na segunda à esquerda".

Na verdade, não precisaria levar a algum lugar, poderia ser um beco sem saída mesmo. Todos desejamos nos perpetuar de alguma forma, embora essa seja a mais singela forma de ser esquecido, como na canção do Clube da Esquina: “Passa bonde, passa boiada/ Passa trator, avião/ Ruas e reis/ Guajajaras, Tamoios, Tapuias/ Tubinambás, Aimorés/ Todos no chão/ A cidade plantou no coração/ Tantos nomes de quem morreu”... Quem hoje sabe quem foi Quintino Bocaiuva? E você? Que rua jamais esquecerá?

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Um céu com preás e sem homens sórdidos


Não sei se foi Mark Twain ou o carteiro de minha rua que me garantiu que todo cão é um cavalheiro e que preferia o céu deles ao dos homens. Um céu de preás, como o da cachorra Baleia de Graciliano, me parece muito mais singelo e atrativo que qualquer concepção paradisíaca tediosa eleita pelos homens e suas metafísicas que não passam de chocolates, como diria Pessoa.

Cresci e vivi com estas criaturas que parecem ter vindo ao mundo para trazer um pouco de alento e doçura ao “horror” conradiano (que não sei se gostava de cães) de nossas existências. A primeira foi Monalisa, vira-lata da mais honrada estirpe, caçadora impiedosa de mucuras e outros seres que ousassem invadir nossas cercanias. Ela está presente na maior parte das minhas fotos de infância e foi minha melhor e única amiga por anos, companheira de um garoto asmático criado como filho único e que pouco saia de casa, tendo seu quintal como mundo particular e sua cadela como fiel escudeira. Ainda na infância tive o Lupicínio Rodrigues, ou o Lupi, um dócil e bobo vira-lata com traços de pastor alemão. Todos se foram, atropelados pela vida, essa miserável e ingrata vida.

Muitos anos depois, no meu primeiro casamento, veio o Julien Sorel, ou só Julien. O plano inicial era uma fêmea shar-pei, mas todas que apanhamos na ninhada do canil choramingavam muito e pareciam assustadas. Peguei um machinho como quem não quer nada, quase cabia na palma da mão e ele se desmanchou todo no meu colo. Muitas vezes não escolhemos o cão, ele nos escolhe. Se fosse contar todas as histórias do Julien renderia um livro. Como quando ele ficava cabisbaixo no pé da porta nos esperando voltar para casa. Como quando ele escapou quando abri o portão e eu tive que ir para uma audiência com o terno todo enlameado por conta do resgate. Como quando ele via os jogos do Corinthians comigo e até hoje rosna e tenta morder o atual marido são-paulino da minha ex-mulher ao comemorar gols do tricolor paulista.

Há menos de dois anos veio o Nicolai Vasilievich Gogol, ou simplesmente Gogol. Um husky siberiano em Manaus não estava nos planos, mas aconteceu. Na primeira noite no apartamento já definira seus lugares favoritos no mundo: aos meus pés no chão gelado do quarto em dezoito graus (haja ar-condicionado) enquanto eu escrevia madrugada adentro ou no suporte inferior da porta da geladeira quando alguém desavisadamente a deixava aberta tempo suficiente para ele pular para dentro. Hoje não cabe sequer num freezer, assim como todo seu amor.

Existem outras fofuras em minha vida que não podem passar sem nota: como o Bruce, o pug destemido da Aline Nobile, em nossa relação de amor conquistada através de subornos e propinas furtivas como pedaços de pizza, pão, calabresa e outras delícias oferecidas sigilosamente fora do olhar de sua severa mãe. Temos Joelma, a lambedora incansável de cadelas de bêbados, filhinha dos meus amigos Tarsizio e Mariana. Vale o registro da bela matilha formada ainda pelo meu amigo Guaraciaba Tupinambá.

“Por tanto amor, por tanta razão”, confesso a fraqueza de ser incapaz de ver filmes, notícias ou qualquer coisa triste que envolva cães. Nós não os merecemos é bem verdade. Muito deveríamos aprender com eles, como bem sabia Diógenes, que se utilizava do comportamento canino para pautar toda sua ética e moral. Os cães sabem instintivamente diferenciar amigos de inimigos: para os primeiros toda a lealdade e favores, aos segundos rosnadas, mordidas e rigores. Das anedotas sobre Diógenes surgiram os termos “cinismo” e “cínico”, que derivam da palavra grega “knykos”, que por sua vez significa cão. Assim como ser maquiavélico, ser cínico não quer dizer necessariamente algo ruim. Ser comparado com um cão muito menos.

Segundo Diógenes, os humanos, em sua hipocrisia, vivem artificialmente, enquanto poderiam aprender com os cães que realizam todas as suas funções corporais em público, comem o que é necessário e dormem no mínimo de comodidade, vivendo um eterno presente, mas sem, contudo, enganarem uns aos outros ou se corromperem.

Quão corrompido é o homem que mata um animal indefeso cumprindo cegamente ordens de seu superior? Quão frio pode ser um homem que determina a morte de um ser inocente em nome da assepsia e bom funcionamento da máquina capitalista?

Espero sinceramente que o Senhor das Esferas faça o favor de dar vitória teológica aos defensores da tese de que animais têm alma e, por conseguinte, céu. Um céu de preás, bolas, ossinhos e guloseimas. Um céu com um campo verdejante para que corram livres e alegres sem qualquer sombra de dor ou suplício. Eles merecem. Nós homens, eu já não sei. Fico nesta vida com a mais sublime forma de alegria e felicidade: um cão contente lambendo nossa face.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Somente os casais fitness são felizes


Não sei se foi Bukowski ou entregador de pizza que me disse que o amor é bom somente para os que aguentam a sobrecarga psíquica. O certo é que somente os casais fitness são felizes. Daqueles que fazem selfie no espelho do elevador, dividem receitas de detox e sabem as inúmeras variações do açaí com granola.

O dueto possui um léxico próprio que envolve stand-up, sup, namastê, gratidão. Importante ter fotos juntos no perfil, mesmo sendo de graça a conta no facebook. Feita a fusão dão ao mundo o novo ser ou entidade: o casal.

Casal que malha unido, permanece unido. Construíram uma imagem ideal um para o outro e se conseguirem permanecer correspondendo ao paradigma montando continuarão unidos; provavelmente não, mas melhor não revelarmos ainda, sem spoiler.

Existe um outro tipo de casal, que fatalmente não será feliz (pois somente os casais fitness são felizes), mas que me parece maravilhosamente mais interessante.

Ele se olha no espelho e conta mais um dedo de espaço na testa amargando as entradas precoces, como se não bastassem os cabelos brancos, olha pra baixo e registra mais um dedo de barriga também. Ele promete parar de beber pela milésima vez, promessa que dura enquanto surtem os efeitos da ressaca.

Ela acorda sem voz, rouca, por ter fumado e falado na noite anterior feito uma apresentadora de programa vespertino de auditório. Ela promete pela milésima vez que vai parar de fumar, ou de teimar nos mesmos assuntos. Sempre está por perder três quilos. Ela possui aquela gordurinha lateral na cintura, linda, chamada de cartucheira, ou para os íntimos, alcinha do amor. No fim da noite contabiliza estrias e celulites aquelas coisas que nós homens ignoramos completamente (junto com o clitóris).

O último casal pode até não ser feliz, já que somente os casais fitness são felizes, mas podem experimentar de vários raros momentos de distração, como diria Guimarães Rosa, se souberem permanecer distraídos, como diria Clarice (a Lispector, não a Falcão), se aprenderem a rir de si próprios e um do outro, se passarem da fase do exigir para o dar sem conta, sem ideais ou ideações.

Não, ele não vai parar de beber. Não, ela não vai parar de fumar. Ele tenta, mas continuará sendo machista, um pouco mais descontruído se houver esforço, verdade, mas sem perder aquele ranço de beatnik tupiniquim. Ela, Beauvoir com rebolado, continuará insegura, continuará fumando, continuará pagando a conta do mundo de ser mulher, vai continuar a ser a teimosa ou a louca dos gatos. Contudo, quando ela vomitar ele estará ao lado segurando seus cabelos e quando da mais simples gripe ele exigir extrema unção e pompas fúnebres, ela estará ao lado também.

Mesmo que somente os casais fitness sejam felizes, isso não quer dizer que o barrigudo indulgente e a maluca dos gatos estejam fadados ao fracasso. Basta que experimentem juntos a chamada meia noite da alma, quando passamos a fazer a contabilidade de nossos erros e acertos da maneira mais sensata e realista possível, sem pedaladas otimistas ou os delírios juvenis megalomaníacos, nem o remorso e a culpa constante do que não conseguimos ser.

Se ambos conseguirem não exigir do outro, nada além da tentativa de ser simplesmente o que é, nem que seja um tentar ser o melhor para si e para o outro, a única dor no abdômen que sentirão é a dos risos a dois.

Quem sabe até ela o faça pegar o violão e o convença a voltar a tocar dizendo: “meu amor, vá além daqueles que cantaram que a tempestade que chega é da cor dos meus olhos castanhos”. Quem sabe ele secretamente inclua linhaça no suco pois pesquisou e dizem que faz bem e ele quer muito, mas muito, ficar mais um pouco com ela. Quem sabe passem a comer a salada no rodizio. Quem sabe uma becel...

E como o ser humano não é estanque, estamos em contínuo movimento e transformação, como Heráclito preferia ser, já na Grécia Antiga uma metamorfose ambulante, quem sabe os dois não se deliciem com as modificações um do outro, desde o corte de cabelo até os interesses mais triviais.

Eles não foram o primeiro amor um do outro, os discos, os livros e memórias estão cheios de presenças distantes de outros que passaram, pouco importa, “eles passaram e passarão, você passarinho”. Quem sabe assim, ela a eterna gatinha, ele o eterno crush, poderão experimentar algo inefável que alguns teimam ainda em chamar (por não haver outro nome) de felicidade.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Hoje por mim os sinos dobram



Quem me dera contemplar a cena
Das horas minhas depois de findo
Implodido pelo coágulo exato
Ou colhido pelo condutor precipitado
Ao atravessar a via distraído.

Quem me dera contemplar a cena
Mamãe a engomar meu paletó
Meu pai a polir a vã medalha
A bandeira corinthiana feita de mortalha
Minha irmã em prantos de dar dó.

Quem me dera contemplar a cena
A vizinhança se aproxima
“Tão moço, tanto por viver”
“Você chegou a conhecer”?
Minha tia a todos se lastima.

Quem me dera contemplar a cena
Da minha celebração nem tão concorrida
Maritza junto ao ataúde debruçada
Nayane aos meus pés desencantada
Luana sofre mais contida.

Quem me dera contemplar a cena
Esperava alguma delas sapatear no esquife
Ou qualquer outra extravagância
Mas o ego é luxo de quem vive
Morrer é não se dar tanta importância.

Quem me dera contemplar a cena
Keline não aparece, porém manda uma coroa...
Jurou cuspir em meu caixão
Eis que chegou à conclusão
De que não vale enfrentar tal fila à toa.

Quem me dera contemplar a cena
Servem as bolachas e o café
Lu proseia com Aline entorpecida
Distante, absorta, em pé
Ariadne fuma enternecida.

Quem me dera contemplar a cena
Uma hoste de ébrios invadindo a sala
“Até das lágrimas o álcool exala”
Acenaria em singelo gracejo
Aos confrades num último festejo.

Quem me dera contemplar a cena
Das informações acerca de minha morte
Que chegaram atrasadas em Lisboa
Onde Tainah imprime na mão um corte
Na sanha por um suplício que pior lhe doa.

Quem me dera contemplar a cena
No velório a amarga a ausência
De Hingrid infeliz que vai de tonta*
Em insaciável abstinência
Em nosso botequim fechando a conta.

Quem me dera contemplar a cena
Anne considerando a velha vitrola
De seu esposo se faz acompanhada
Há de ouvir nossa canção de outrora
Escapando um gemido embaraçada.

Quem me dera contemplar a cena
Kigenes ensaiando seu discurso
Lá de fora um cão ladra
Um menino pontapeia a lata
Valesca sufoca seu soluço.

Quem me dera contemplar a cena
A mão do frade me abençoa
“Cumpriu ele sua própria sina”
No campanário o sino ressoa
A vida irrompe em mais um dia.

Quem me dera contemplar a cena
Cavalheiros dispostos a oferecer consolo
A cada uma por mim amada
Sempre há de ter uma alma desinteressada
Essa meditação me oferece algum conforto.

Quem me dera contemplar a cena
Junto a uma adaga e branca luva
Deixo um bilhete fosco não endereçado
Como espólio num garrancho mal borrado
“Vês que já és minha única viúva”**.




* Referência ao poema "Dia da criação" do Vinicius de Moraes.

** Referência ao verso de Ruy Belo "tu és já minha única viúva".


terça-feira, 27 de novembro de 2018

Crônica do Retorno: A Síndrome do Amor Pré-Carnaval


Não sei se foi Graciliano Ramos ou meu lanterneiro que disse que a única certeza do homem na vida é a morte e a única certeza do brasileiro é o carnaval no ano seguinte. Novembro finda, logo mais é dezembro e o ano que vem... virá. Nessa altura do campeonato nossos concidadãos solteiros se dividem em duas facções mais distantes e irreconciliáveis entre si que bolsominions e petralhas, torcedores do icasa e do guarani: aqueles que desesperadamente esperam passar os festejos natalícios na casa da futura sogra e os que estão se guardando para quando o carnaval chegar.
Para uns é correr contra o tempo, contra o prejuízo. Mais aflito que cruzmaltino na eterna luta inglória contra o rebaixamento, em poucas rodadas é preciso realizar o que não foi capaz de fazer o ano inteiro. Menos de um mês para o famigerado date de approach (o jantarzinho no lugar legal), o segundo pra criar química e descontrair (o barzinho camarada), o terceiro pra finalmente transar (caso não tenha ocorrido ainda), o quarto pra começar a esquecer calcinha e outros objetos íntimos, o sexto pra escovar os dentes de porta aberta (cagar só depois de um ano), para finalmente vir o sétimo pra conhecer a família e carimbar o acesso na festa de natal mais cobiçada que a vaga na libertadores em reta final de brasileirão. Dependendo da gana é possível suprimir as etapas, cumprir os seis primeiros passos em um só, esquecer essa história de dois volantes, coisa mais carola-conservadora, jogar sem medo, jogar como Brasil.
Por sua vez, para os solteiros por convicção e fé o tempo não passa, chega a quaresma e o carnaval não chega. Maneira daqui, troca o salame pela alface acolá, projeto verão firme e forte, se olha no espelho, dá tempo de perder uns três quilos, abdominais depois da cervejada do dia anterior, não sabe o que dói mais: o crossfit ou a ressaca. O crossfit de ressaca, decerto.
Na vida é tudo uma questão de “time”, não o clube, aquele que é tido como senhor de tudo, em inglês mesmo, soa mais capitalista, mais pragmático que nosso “tempo” lusitano evocador de versos de Pessoa e canções de Nana Caymmi. Enquanto eu bebo um pouquinho pra ter argumento, penso no maior dos perigos aos que já planejam e anseiam o total desregramento dos sentidos nas festas momescas: a síndrome da paixão pré-carnaval. Ainda não catalogada, sem CID, terapia ou tratamento, a síndrome da paixão pré-carnaval afeta milhões de incautos promovendo inúmeras baixas nas fileiras de foliões todos os anos. Recorrente em meados de novembro, atinge seu ápice de contágio nos idos de dezembro e janeiro, apesar de haver registros de casos na quinta de esquenta carnavalesco.
Doença insidiosa, a paixão pré-carnavalesca começa sutil, assintomática. Começa quando se acorda pensando na morena ou no boy da noite anterior. Aquelas cinco curtidas seguidas em fotos antigas do instagram, os três amei nas postagens do facebook, a primeira retweetada a gente não esquece, depois vem a playlist compartilhada do spotify, a chamada sem querer no whatsapp quando vamos futricar a foto da pessoa pela quinta vez ainda pela manhã: - Me ligou? - Liguei sem querer, perdão.
Daí é um caminho sem volta, a agenda do final de semana organizada de acordo com os eventos que o-a @ marcou interesse, as primeiras músicas que irão compor a trilha sonora da nova paixão, a análise filmográfica: os filmes que você viu e o outro não, os que o outro viu e você não, os que ambos não viram, os que ambos viram e agora verão juntos. O resto é ladeira abaixo, trocam o número dos seus terapeutas, aproxima minha ansiedade da tua depressão, aconchega teu toc na minha bipolaridade. Passagens para Olinda canceladas na CVC, ainda tem a terceira parcela do abadá do bloco em Salvador por pagar, ou isso, ou acrescenta no pacote e vamos juntos, leva sanduíche pra banquete patrão, já está apaixonado(a). Soldado e guerreira abatidos. Quando o amor acontece é assim, e você que jurava mudar de calçada quando aparecesse uma flor e dava risada do grande amor: mentira.